Postado em 28/02/2019
Cresci em uma família falante, barulhenta e cheia de gestos, onde os livros estavam aos montes pela casa. Eles viviam ali e, entendi depois, alguns eram escritos por lá mesmo. Tinham um lugar especial para ficar, um cômodo querido, que eu, orgulhosa, convidava os amigos e amigas para visitar: “Venham, tem uma biblioteca na casa da minha mãe”. Uma expressão que traduzia o meu desejo e que me conduziu e transformou em bibliotecária.
Atuando nessa profissão, eu me dei conta de que só o espaço físico e os livros não me bastavam, meu encantamento emanava também de outra fonte: eram as pessoas com suas estórias ou em busca de histórias alheias que sustentavam o “porquê” de estar esperando – parada nunca! – o próximo olhar a me tirar para conversar.
E posso afirmar que não existe lugar melhor no mundo para conversar do que em uma biblioteca.
Quando cheguei à unidade do Sesc Bom Retiro para entregar os documentos para minha admissão, entrei distraída no segundo andar e, ao me deparar com a Biblioteca, seduzida e convicta, sentenciei: “Ela será minha!”. E até hoje é assim: uma relação passional (pode ser brega, fazer o quê?).
Todos os lugares da Biblioteca são espaços para ler: lemos dentro dos casulos, nas mesas, no chão, no tapete e em pé no balcão. As mediações ocorrem com a participação de vários e diversificados agentes.
Quem estiver “dando sopa” pode ser o próximo mediador/ouvinte.
Neste percurso de mediações incontroláveis, indomáveis, programadas e não planejadas, muitos momentos ficaram guardados na memória.
Lembro-me de Júlia, penúltima de uma família de seis irmãos que, aos cinco anos de idade, estava todos os dias no Sesc. Júlia não ia à escola, não falava muito, não comia muito, não pulava muito, mas sorria sempre, sorria para responder a qualquer pergunta, sorria para dizer que estava triste ou que estava feliz. E sorria sem parar quando alguém lia para ela.
Nas leituras compartilhadas com Júlia, a seleção de livros deveria sempre dispor de pelo menos um título da autora Eva Furnari. Quando chegávamos à travadinha
O pato patético paquera a pata magnética, Júlia pausava o riso para gargalhar. Ninguém resistia ao sorriso pedinte da Júlia – eu duvido que tenha alguém que resista a um pedido de sorriso. Descobrimos que naquele segundo andar do Sesc Bom Retiro mais ou menos dez pessoas liam “Eva para Júlia” todos os dias!
Há alguns anos, o teatro da unidade recebeu a peça Felpo Filva e a própria Eva esteve na Biblioteca com elenco e direção para um bate-papo divertido com histórias de sua vida e do seu trabalho, com demonstração ilustrada do processo de criação de personagens.
Muita gente veio vê-la.
Júlia estava lá. Enquanto Eva autografava, Júlia pegou um livro da Biblioteca e nós nos aproximamos (Júlia, eu e mais quatro leitoras representantes assíduas de “Eva para Júlia”). Júlia abriu o livro e leu para Eva, página a página, com voz e dedinho. Era a nossa vez de sorrir e dizer: “Júlia ainda não está alfabetizada, mas sabe ler seus livros, Eva!”. Abraços emocionados e um livro-presente da Eva Furnari dedicado para Júlia são a sequência desta história que, como muitas outras, me atravessa em meu cotidiano.
A Biblioteca do Sesc Bom Retiro se integra a outras quinze bibliotecas físicas e a mais seis BiblioSesc (bibliotecas móveis), integrando uma ação em rede do Sesc em São Paulo. Somos muitos bibliotecários que, como eu, gostam de gente e de livros. Venham, tem uma biblioteca para você!
Ana Paula Cechinel é formada em Biblioteconomia e
Ciência da Informação pela Fesp-SP e aluna da
Pós-Graduação Livros, Crianças e Jovens: Teoria, Mediação e
Crítica, no Instituto Vera Cruz. É bibliotecária no Sesc Bom Retiro.