Postado em 31/01/2019
Nas últimas décadas, os processos educativos desenvolvidos em museus, bienais e demais espaços de arte têm buscado encurtar a distância entre obra, artista e público. Além disso, esses processos procuram se constituir e se afirmar publicamente com ferramentas e procedimentos próprios. A esse campo plural de atuação – que não se limita a promover o acesso a bens culturais reconhecidos e legitimados como tais – se atribui o nome de “mediação cultural”. O recém-lançado Agite Antes de Usar (Edições Sesc São Paulo) reúne uma coletânea de artigos e entrevistas organizados por Renata Cervetto e Miguel A. López sobre as interfaces entre arte e educação. Publicado originalmente em espanhol a partir de uma parceria entre o Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (Malba) e TEOR/ética, de São José, Costa Rica, essa nova edição amplia o debate na língua portuguesa. Neste Em Pauta, foram selecionados trechos de dois artigos. O primeiro, de Luiz Guilherme Vergara, ex-diretor-geral (2005-2008) do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, tece uma reflexão sobre a simultânea distância e proximidade entre arte contemporânea e mundo cotidiano. Enquanto o segundo texto, assinado pelas pesquisadoras em arte e educação Carmen Mörsch (Alemanha) e Catrin Seefranz (Áustria), exemplifica ações educativas na Bienal de São Paulo, consolidadas a partir da 24ª edição, realizada em 1998.
Luiz Guilherme Vergara
A proposta deste texto é justamente levantar as bases de uma reflexão sobre uma atitude estética formadora de um olhar que se fundamente numa prática do encontro com a arte contemporânea. No que consiste a vivência de significados da arte contemporânea? Seja ela uma língua estrangeira para o grande público ou deslocamentos de objetos achados em nosso dia a dia. Estes dois pontos antagônicos, a simultânea distância e proximidade entre a arte contemporânea e o mundo cotidiano, se desdobram na problemática do que essas tendências demandam por parte do sujeito da experiência estética. Que relações e atitudes estéticas são estimuladas para o encontro e o diálogo com os significados desses objetos/espaços metafóricos ou arqueologia contemporânea?
Diante dessas premissas, pode-se dizer que aquilo que (se) por um lado é um sintoma de distanciamento da arte, vista como “língua estrangeira” por Philip Yenawine [arte educador norte-americano, ex-diretor do departamento de educação no Museu de Arte Moderna de Nova York, entre 1983-1993], por outro invoca uma ação de descoberta, de revelações e conquistas por parte deste sujeito da obra de arte, o anônimo público, nunca antes explorada.
A consciência do olhar
A arte contemporânea se encaminha para uma atitude temporal, perceptiva, que mais adiante abordarei como percepção imaginativa. Desde os anos 1960, os artistas minimalistas, com as instalações chamadas site specific (site specific installations), Richard Serra, Robert Morris, entre outros, declaravam o fim da escultura como tal, ao mesmo tempo que criavam interferências em espaços arquitetônicos que, se deslocadas, seriam destruídas. O fim da escultura se desdobra em redefinição e expansão da arte. A então nova proposta de arte (1960) se expande para um espaço/tempo não específico da tradição do mundo da arte, pois as rupturas que estavam ali expressas envolviam um complexo percurso da história da arte e também da filosofia.
O que estava em foco eram os espaços institucionais – o museu, o pedestal e os materiais que formaram a história da escultura e da arte. Mas toda essa discussão só era compartilhada por um restrito número de pessoas dentro do campo do mundo da arte.
Para o grande público, mais uma vez, a incompreensão. Era mais um truque da história da arte moderna ou
já pós-moderna?
A escultura site specific, proposta nos anos 1960 pelos artistas minimalistas, figura também como uma materialização pioneira da relação sujeito/arte/mundo. O meu interesse aqui, ao mencionar esse momento, é registrar quão importante esse movimento foi na expansão de fronteiras entre arte e vida. Ali se encontram as sementes do idealismo da nova escultura – a própria desmaterialização da arte – ou a materialização desta como consciência no mundo.
Ao mesmo tempo, essas instalações demandam um esforço da consciência com um espaço integralmente fenomenológico. A arte, então, quer ser construtora de consciência: a consciência do olhar. Os espaços (interno e externo) das instalações são fisicamente percorridos pelo sujeito. Essa situação é totalmente inédita. É extremamente interessante investigar a relação entre arte e filosofia no estudo deste período dos anos 1960 na história da arte.
A arte passa a propor muito mais que história e memória: a construção de consciência, que aqui será referida como consciência do olhar. Pois se ela deve emergir do encontro com a arte, da experiência estética, ela é da esfera do “primado do olhar consciente”. A arte se torna matéria filosófica, matéria mental e poética pura, pois ela conquistou o direito/responsabilidade (?) de levantar questões sobre a condição humana, a realidade, a mente humana, o meio ambiente, o pensamento, a percepção e a interpretação estética.
Acima de tudo, a arte se constitui ou oferece um espaço metafórico de experiência que reflete as transformações na relação sujeito/objeto, sujeito/mundo. E, ainda assim, ela é tida como incompreensível língua estrangeira. A principal tendência ao final de nosso século é representada pelas instalações intermídias ou multimídias. Do fim do suporte tradicional da pintura (de limites bidimensionais), ou do pedestal na escultura, já muito discutido, a arte se expande para objetos, daí para espaços públicos (site specific art), arquitetura, cenários.
A todas as manifestações, eu chamaria de materialização de espaços. Isso se dá através de apropriações e deslocamentos desse universo para o espaço “sagrado” dos museus e galerias – a arte volta ao MUSEU! Mas quer trazer o mundo reunido dentro de si para dentro do museu. Ao mesmo tempo, cresce o desentendimento e a distância para se acessar a intenção estética da produção artística contemporânea.
Uma curadoria educativa tem como objetivo explorar a potência da arte como veículo de ação cultural. Ela se baseia num estudo iniciado em Nova York em três situações institucionais da arte bastante distintas. São elas: o Metropolitan Museum of Art, The New Museum of Contemporary Art, e as curadorias de Arte Pública de Mary Jane Jacob (Culture in Action – Public Art). O que existe em comum entre todos estes casos são os seus esforços para expandir os conceitos de curadoria para tornar as exibições naquilo que Mary Jane Jacob aponta como foco de uma ação cultural. Tornar a arte acessível a um público diversificado e torná-la ativa culturalmente. Esse é um ponto que tem sido crucial em debates e simpósios internacionais sobre museus de arte e sua redefinição.
Ação cultural da arte supõe a dinamização da relação arte/indivíduo/sociedade – isto é, a formação da consciência e do olhar. Pode-se dizer que essa questão é muito embrionária aqui no Brasil. Reconhecendo o pouco valor e investimento que é dado para a expansão do horizonte relacional das exibições de arte e a sociedade, realizadas em espaços culturais públicos, essa preocupação se torna emergente como um embate contra a situação geral do sistema de artes vigente no Brasil.
Se existe a possibilidade de se reintegrar
a arte a uma dimensão de ação cultural,
o que está sendo proposto é que esse caminho
se abra pela experiência do olhar
Nesse sentido, ao se propor a exibição de arte como ação cultural, tem-se como objetivo criar uma perspectiva de alcance para a arte ampliada como multiplicadora e catalisadora dentro de um processo de conscientização e identificação cultural. Sem dúvida, é preciso fundamento teórico/prático para transformar a experiência estética junto às exposições em um centro de interações multidisciplinar e diversificado acessível para vários níveis de público. Isso não significa uma subtração de potência da arte per si em favor de prioridades didáticas. Pelo contrário, expandir o conceito da relação arte/sociedade.
Arte como ponto de encontro/estranhamento, admiração e reconhecimento
Tempo 1: experiência perceptiva (individual) – estranhamento e/ou admiração.
Tempo 2: ato crítico/perceptivo – descrição e reconhecimento (individual/grupo).
Tempo 3: emergência de um ser poético/Imaginação ativa – associações, interpretação (interação em grupo).
A fruição e posse da obra de arte, isto é, quando a obra se abre para o sujeito, significando a vivência de significados, só se dá quando esse sujeito atinge o tempo 1. A emergência desse ser poético, dessa consciência poética, não é, a priori, anterior à experiência; esta se faz numa relação recíproca de despertar que envolve simultaneamente estranhamento/admiração, percepção/imaginação. Se existe a possibilidade de se reintegrar a arte a uma dimensão de ação cultural, o que está sendo proposto é que esse caminho se abra pela experiência do olhar – um despertar e construção de consciência. A consciência do olhar.
Luiz Guilherme Vergara, doutor em Arte e Educação pela New York University (NYU) e professor do Departamento de Arte na Universidade Federal Fluminense; diretor da área de Educação (1996-2005) e diretor-geral (2005-2008) do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, onde desenvolveu diversas experiências na área de Curadoria e Educação. Também coordenou o Núcleo Experimental de Educação e Arte no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro entre 2010 e 2013.
Fora do cantinho – arte e educação na 24ª Bienal de São Paulo (1998)
Carmen Mörsch e Catrin Seefranz
Em 1975, ano da 13ª Bienal de São Paulo, um grupo de artistas reuniu filmagens, entrevistas e restos materiais dos arredores do Parque Ibirapuera para produzir artefatos para a bienal do ano 2000, uma projeção arqueológica do futuro da própria bienal. De fato, a bienal de 2000 quase não ocorreu: a edição planejada para o milênio foi postergada em duas ocasiões. Quando finalmente se realizou a 25ª edição, em 2002, a recepção por parte do público foi tímida. No entanto, quatro anos antes, ocorrera uma Bienal de São Paulo, a 24ª, com muito mais potencial para realizar uma arqueologia do futuro das exposições, assim como para delinear o futuro da educação artística.
Entre as relíquias dessa 24ª edição (1998), imaginemos um discreto cubículo de metal e cristal coberto pela vegetação do Ibirapuera, com uma logomarca [de uma instituição bancária] sobressaindo-se do mato. Tratava-se de uma sobra da Sala de Educação, uma estrutura levantada no piso térreo do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, que uma vez funcionou como base de operações para as iniciativas educativas da bienal – um dos aspectos menos analisados, mas mais relevantes desta hoje reconhecida exposição.
Esse cantinho para a educação artística foi concebido principalmente como um espaço para facilitar intercâmbios e oferecer informação aos professores visitantes (inicialmente se chamou Sala do Professor), mas, na verdade, foi muito mais que isso: para a 24ª edição, a educação já tinha se transformado num pilar fundamental da bienal. Tomando como ponto de partida a imagem do contêiner rejeitado e desenterrado das profundezas, podemos escrever uma modesta arqueologia do projeto educativo na 24ª edição da bienal.
Podemos, ao mesmo tempo, reconstruir e contextualizar suas políticas e sua prática da educação artística, que foram ambiciosas e avançadas para a época. O que surgiu desse cantinho entrou num campo de força cultural em que se misturavam interesses de ordem política, curatorial, econômica, de políticas públicas e de educação das artes. Essa arqueologia revela uma continuidade que desempenhou um importante papel na história.
Uma “diferença curatorial”
Na 24ª Bienal de São Paulo, a educação foi implementada de cima, aparecendo no alto dos anúncios da proposta curatorial e da política institucional. Essa foi uma situação pouco usual, apesar do longo compromisso da bienal com a área da educação. Nas palavras de Evelyn Ioschpe, diretora dessa área naquela edição: “Enquanto normalmente a educação vem a reboque da curadoria, ou mesmo a despeito da curadoria, aqui no momento zero se manifestara a vontade da instituição e da curadoria de que se realizasse um esforço educacional importante”.
Julio Landmann, presidente da Fundação Bienal de São Paulo naquele momento, descreve o imperativo educacional junto com o curador da exposição, Paulo Herkenhoff, da seguinte maneira: “Desde o primeiro mês de preparação, redigimos um documento em que destacávamos as principais funções da bienal. Tinha em torno de 20: desde ser um museu temporal até uma representação simbólica da cidade de São Paulo; desde educar o olhar de artistas jovens até mostrar a arte brasileira na cena internacional. A 24ª Bienal foi erguida em três etapas: exposição, educação e edição, por meio do que ela mesma começou a se ver como um instrumento útil para a educação na arte.
O peculiar lugar constitutivo dado à educação artística naquela edição fica patente pela criação do posto de diretor educacional na Fundação Bienal. Sob o espírito de uma “instituição crítica”, criou-se um plano de ação para um museu reflexivo, um “lugar aberto e uma instituição pública”. Anos depois, a postura curatorial baseada no educativo, anunciada na 24ª Bienal, converteu- se, no Brasil, em status quo. Herkenhoff se propõe a ler essa proposta como a “diferença curatorial brasileira”, como uma atitude de compromisso que “é parte de uma consciência social que caracteriza o Brasil, por meio da qual uma exposição artística pode contribuir para criar cidadania, um processo impulsionado pelo curador enquanto agente, em que a educação é um elemento fundamental”.
História subterrânea
O compromisso educativo da 24ª Bienal aparece como uma iniciativa totalmente nova. No entanto, o certo é que ela se construiu sobre significativas experiências prévias que permaneceram “subterrâneas” por muito tempo. Durante suas primeiras décadas, a bienal parece ter funcionado como uma espécie de academia particularmente intensiva e de alta qualidade para todos os contratados como educadores. Até a década de 1980, o programa de educação artística tinha se concentrado no formato clássico da visita e tendia a ser complacente em sua aproximação ao aparato expositivo e suas narrativas curatoriais.
Nos anos da ditadura militar, de 1964 a 1985 – quando, apesar do regime, foram apresentadas articulações dissidentes em várias bienais –, a educação artística para estudantes na idade escolar se converteu em parte do programa da mostra. Isso ocorreu graças à iniciativa de Antonio Santoro Junior, que era seguidor da bienal, provinha de uma família de clowns profissionais e terminou se formando professor de Arte. O programa que organizou para escolas vizinhas do Parque Ibirapuera pode ser visto como um precedente embrionário do programa de visitas escolares em grande escala da 24ª Bienal.
O que surgiu desse cantinho
entrou num campo de força cultural
em que se misturavam interesses
de ordem política, curatorial, econômica,
de políticas públicas
e de educação das artes
Depois disso, a frequência de estudantes aumentou ao longo dos anos, de 20 mil em 1975 (cifra alcançada graças a uma estratégia de cooperação com um jornal) para 130 mil em 1998 (110 mil de escolas públicas e 20 mil de escolas privadas, por meio de um sistema de cooperação com o Estado de São Paulo). Quando terminou a ditadura militar e começou o governo civil, em 1985, as iniciativas no âmbito da educação continuaram, mas sob condições que, comparadas as da 24ª edição, eram quase informais.
A célebre 16ª Bienal, curada por Walter Zanini, em 1981, ofereceu várias mudanças de paradigma que se infiltraram até na área de educação. Com determinação, Zanini concebeu a exposição como um meio, seguindo as ideias que o filósofo Vilem Flusser tinha traçado quando foi conselheiro da bienal no início dos anos 1970. Isso levou a reflexões sobre o “processo de comunicação entre a arte e o público”, um tema amplamente debatido no campo da educação artística naquele momento; e foi assim como se iniciou uma mudança nas (e uma análise das) relações de poder. Para as edições 18ª e 19ª, realizadas em 1985 e 1987, assegurou-se o espaço de oficinas para estudantes e trabalhadores de “várias fábricas” ligadas à exposição. A bienal mudou seus discursos, o trabalho realizado ali ficou mais visível e os visitantes se sentiram tão tocados pela arte que começaram eles mesmos a fazer arte também.
Portanto, o campo em que a 24ª Bienal construiu seu cantinho e onde implementou de maneira exitosa seu ambicioso programa educativo já tinha sido semeado anos atrás; e foi assim que suas próprias atividades em 1998 prepararam o terreno para as edições seguintes. A Bienal do Futuro se tivesse ocorrido em 2000 provavelmente teria colocado a educação no centro de suas preocupações. Isso é possível inferir graças ao que o curador designado, Ivo Mesquita, disse: “O interesse primordial do curador é, em todos os casos, a educação”.
Carmen Mörsch, pesquisadora alemã que combina sua formação artística com seu trabalho em educação e pesquisa. Suas áreas de interesse abarcam a educação crítica em museus e galerias, as práticas colaborativas na arte e educação; perspectivas pós-coloniais e teoria queer na educação artística.
Catrin Seefranz, pesquisadora austríaca formada em Estudos Latino-Americanos e Culturais, especializada em modernismos brasileiros, com foco em críticas a hegemonias e colonialismos presentes no campo artístico e educativo.Faz parte do grupo de pesquisa transnacional Another
Roadmap, (Re)Mapping Critical Practices of Art Education.