Postado em 22/01/2019
Texto: Sidmar Silveira Gomes e Gabriel Alarcon Madureira
Este relato de experiência tem como escopo apresentar a concepção, o desenvolvimento e os resultados do Projeto Libididades – Idosos e Sexualidade, realizado entre os dias 2 e 16 de maio de 2018, no Sesc Pompeia. Tal ação programática aconteceu em diálogo estreito com os temas contemporâneos da velhice, do envelhecimento e da sexualidade, articulando, assim, debates acadêmicos, científicos, demandas so- ciais e ações institucionais. Em suma, permitiu a prática e a reflexão dos dilemas enfrentados pelos idosos em geral, e pelos idosos LGBT’s em específico, abrindo um diálogo comum, tendo em vista fomentar a ruptura de preconceitos e estereótipos, no sentido de uma sociedade mais humana e diversificada.
A origem do projeto nos desejos dos técnicos e nas percepções do público
O projeto Libididades – Idosos e Sexualidade, antes mesmo de assim ser nomeado, originou-se do desejo de um dos técnicos de programação do Sesc Pompeia - Devanilson José (in memoriam) -, de propor, para a unidade, uma programação musical regular, que dialogasse com o público idoso gay. A justificativa era pautada pelo exemplo do tradicional baile paulistano ABC Bailão, um baile noturno, destinado ao público idoso LGBT, na Rua Marquês de Itu, centro de São Paulo, e proposto pelos amigos e produtores Ama- rildo e Rogério. O local privilegia, em sua pista, os hits românticos, a disco music dos anos 1970, os boleros e uma boa dose de dance anos 1980.
Compartilhada essa ideia inicial com os demais técnicos de programação da unidade, foi formada uma comissão, integrada por pro- gramadores do núcleo artístico e do núcleo socioeducativo, dando ao projeto um enfoque transdisciplinar, por meio da integração das áreas da música, do Trabalho Social com Idosos, da diversidade e dos direitos humanos.
O próximo passo foi a realização de uma reunião com a equipe técnica da Gerência de Programas e Estudos Sociais (Gepros) para a elaboração do projeto, em um momento de compartilhamento de impressões acerca do tema em questão, sendo unânime a decisão de ampliar a abrangência do projeto, no sentido de incluir discussões não apenas atinentes aos idosos LGBT, mas a todas as identidades de gênero e possibilidades de exercício da sexualidade.
Estabelecido esse denominador comum, a equipe de programação da unidade deu início aos estudos desse tema a partir de levantamento teórico. Trabalhos como o do pesquisador Carlos Eduardo Henning (2014), sobre idosos LGBT, Mirele Berger (2006) e Carmita Abdo (2015), sobre a sexualidade da mulher idosa, Judith Butler (2003) e seus estudos sobre gênero, além das edições da revista Revista Kairós Gerontologia (São Paulo, Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP), foram fundamentais ao longo desse percurso, ainda inicial.
De largada, a pesquisa empreendida revelou a predominância de artigos e reflexões que localizavam a sexualidade das pessoas idosas na seara dos problemas, sobretudo de saúde pública como, por exemplo, a impotência sexual e o aumento da incidência de doenças sexualmente transmissíveis entre indivíduos com mais de 60 anos. Ou seja, não raro, a sexualidade das pessoas idosas era tratada pela perspectiva da medicalização e dos mecanismos de controle do governo sobre essa faixa populacional. A sensação percebida era a de que, ao mesmo tempo em que são evidentes as campanhas de estímulo ao exercício da sexualidade por parte das pessoas maiores de 60 anos, procura-se frear a sua prática via medidas de controle e alerta à população. Partindo dessa contradição, o Sesc Pompeia propôs o Projeto Lidibidades – Idosos e Sexualidade, objetivando abordar o tema pela perspectiva sociocultural e da educação não-formal, utilizando ações reflexivas e humanistas em consonância com a diversidade, valor fundamental ao Sesc São Paulo.
Vale ressaltar que o projeto Libididades – Idosos e Sexualidade surgiu também de uma demanda percebida dos próprios frequentadores da unidade, em diferentes programas ofertados, entre eles, o Segue o Baile, baile dançante que acontece na unidade Pompeia todas às quartas-feiras, no período da tarde; Cá Entre Nós, projeto institucional que possibilita o encontro e compartilhamento de experiências entre idosos de diferentes unidades; e o Festival da Integração, estadia de 5 dias na unidade do Sesc Bertioga, objetivando a integração e socialização dos idosos a partir de temas conceituais e atividades correlatas.
Em suma, paralelo ao percurso dos estudos teóricos e temáticos, tomamos contato com o trabalho profissional de idosos e idosas, em diferentes áreas, interessados nos temas dos idosos e da sexualidade. Dessa forma, estabeleceu-se como objetivo o protagonismo do idoso não apenas como público prioritário para as atividades a serem oferecidas pelo conjunto da programação em construção, mas, sobretudo, no que tange à proposição e coordenação dessas ações.
A ruptura de estereótipos e preconceitos na velhice LGBT
Nas últimas três décadas, variados acontecimentos transformaram as referências e vivências sobre a sexualidade e, também, sobre a velhice.
O aumento da expectativa de vida da população impactou no desenvolvimento e construção dessas novas referências, demandas e desejos, no âmbito individual e coletivo. A visibilidade, a ampliação das discussões sobre gênero e sexualidade; a busca e a conquista pela liberdade de expressão; o fortalecimento da ideia do amor livre; os pânicos morais suscitados pela epidemia do então desconhecido HIV/AIDS, em meados da década de 80; os movimentos sociais, que buscam a equidade de gênero; as conquistas das mulheres e os novos papéis assumidos pelos homens transformaram e vêm transformando a realidade.
Possibilidades e dificuldades surgiram na intersecção destes universos, como: existir no espaço social com outra identidade de gênero, falar e experimentar a sexualidade de outras maneiras, os novos adventos relativos à indústria farmacêutica e à medicalização, as demandas por cuidado, as mudanças no corpo e o contínuo desejo de afetar e ser afetado.
Da pesquisa social à programação
Assim, no âmago dessas questões, no período de 2 a 16 de maio de 2018, realizaram-se debates, encontros, intervenções artísticas e vivências vinculados aos idosos e à defesa dos direitos humanos com o objetivo de abordar como as pessoas com mais de 60 anos percebem e vivem essas experiências, seus processos de envelhecimento, conquistas e potencialidades, além de fomentar possibilidades de reinvenções de práticas e ideias. Entre os encontros ocorridos, destacam-se:
• Velhice, gênero e sexualidade
O encontro discutiu, a partir de relatos e reflexões, o processo de envelhecimento de lésbicas, gays, bissexuais e de pessoas trans, perspectivando as principais tendências, polêmicas e embates desse campo, assim como os seus desdobramentos recentes em prol da complexa constituição, legitimação e criação de políticas públicas, práticas e pensamentos concernentes a “novos” atores sociais: idosos LGBT. Contou com a participação de: Miss Biá, Marisa Fernandes, Jane di Castro, João Silvério Trevisan e Carlos Eduardo Henning.
• Sexualidade e envelhecimento: tabus e realidade
A sexualidade, hoje, é fortemente vivenciada pelos idosos, ainda que socialmente continue tratada como tabu. Estereótipos de uma velhice assexuada permanecem no imaginário social. Esse encontro objetivou refletir sobre como a sexualidade é retratada e vivenciada entre os idosos. Estiveram presentes nesse encontro: Lourdes Barreto, Mirela Berger, Adriano da Siiva Rozendo, Ângela Mucida e Eva Bettine.
• Idosos e sexualidade: estereótipos, fetichização, moralismo e medicalização
Não raro, a sexualidade associada às pessoas maiores de 60 anos é abordada pela perspectiva do estereótipo, da fetichização, do moralismo e da medicalização. O encontro pretendeu partir da problematização dessas visões estanques da sexualidade e do idoso, almejando significados plurais para a experiência da sexualidade. Mediaram essa discussão: Rita Cadillac, Helena Ig- nez, Dr. João Afif Abdo e Cristiano Burlan.
Além desses encontros, de caráter reflexivo e de compartilhamento de pontos de vista e opiniões, a programação também contou com a apresentação de shows e intervenções artísticas, que abordaram, por meio de um apelo aos sentidos, de forma direta ou indireta, os temas da sexualidade das pessoas idosas. Entre eles, pode-se pontuar o encontro poético-musical protagonizado pelas musicistas Alice Ruiz e Alzira E; a realização de uma edição do Abc Bailão, na Comedoria do Sesc Pompeia, como já dito, baile inspirador inicial do projeto aqui descrito; e, por fim, a performance Tricotando Corpos Oníricos, surgida da relação entre as artistas Sue Nhamandu e Rita Wu, interessadas em explorar, de maneira sutil e delicada, a vulnerabilidade dos corpos femininos pelo viés do trabalho manual e/ou tecelão.
Tendo em vista a experiência da sexualidade a partir do corpo em jogo, também foram propostas vivências práticas. Destacaram-se: Pole Dance, com Vera Marques; Lap Dance, com Maravilhosas Corpo de Baile; Fotografia Boudoir, com Glauber Silva; Oficina de App Amoroso, com Ana Carolina Weffort e Erika Kogui; e, por fim, oficina de bordado a partir do tema Quadrinhos, Feminismo e Sexualidade, tendo como disparador o HQ “Bordados”, de Marjane Satrapi.
Ressonâncias do Libididades
Pelo fato desse projeto ter sido inédito na unidade, e por tocar em temas e práticas ainda considerados tabus, não se sabia ao certo o tipo de reações que as atividades poderiam desencadear nos frequentadores da unidade, fossem elas positivas ou negativas. Dessa forma, foi demandado das áreas de atendimento e orientação de público, sensibilidade e apropriação frente aos objetivos e justificativas do projeto, bem como clareza quanto às particularidades de cada uma das ações. Resolveu-se essa questão a partir de um bate-papo de mediação, envolvendo os programadores do projeto e a coordenação, a supervisão e os colaboradores das áreas de ateidimento e orientação de público, em que foram debatidas as questões que envolviam a proposta.
Ao fim do projeto, algumas questões ressoaram. As atividades desenvolvidas em diferentes espaços do Sesc Pompeia contaram com a adesão não apenas de idosos, mas também de outros grupos etários, talvez já preocupados com um futuro não muito distante, o que revelou que essa discussão também extrapola o interesse de seu público-alvo. Dada à grande adesão por parte do público, comprovada, inclusive, pela forte aceitação e participação dos idosos em atividades como as oficinas de Fotografia Boudoir e de Pole Dance, reafirmou-se a necessidade de discussão do exercício da sexualidade por parte das pessoas idosas, de forma criativa, emancipatória e libertária, em oposição a uma abordagem moral e prescritiva.
Dessa forma, colocados em xeque os preconceitos raciais, culturais, sociais, sexuais e de gênero, o projeto Libididades – Idosos e Sexualidade ensaiou que a reinvenção constante da existência é um exercício de legitimidade do ato de se estar vivo, e que, para isso, não há idade que seja mais, ou menos, apropriada.