Postado em 21/12/2018
Mensagens telegráficas, casas inteligentes e
propagação de dados pessoais são alguns aspectos
que espelham essa nova sociedade conectada
Da internet discada, que levava horas até conectar diferentes países, à possibilidade de ser motorista e passageiro ao mesmo tempo, num carro comandado por sensores. Avanços da tecnologia que interferiram e interferem na forma como vivemos e convivemos. Mudanças acompanhadas, ano após ano, por Demi Getschko, um dos pioneiros da internet no país e primeiro brasileiro a entrar no Hall da Fama da Internet Society, na categoria Conectores Globais. Engenheiro eletricista de formação e conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil, Getschko não vê mais com tanta surpresa esses e outros cenários que já foram desenhados como ficção científica. Com cautela, o pesquisador, que ainda assume o papel de diretor presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto br (NIC.br) e de professor associado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), reflete sobre a sociedade conectada. Nesta entrevista, o especialista questiona os benefícios da Internet das Coisas, a exemplo de casas inteligentes, e faz um alerta sobre privacidade na rede. “Havia um mito na internet original de que seria possível ficar anônimo. Uma mentira. Na internet, tudo o que você faz é porque o outro lado deixa”, esclarece.
Foto: Leila Fugii
Como foi esse começo da internet?
Era mais difícil usar uma máquina de escrever que hoje manusear um celular. Por isso, uma coisa é clara: quanto mais tecnológicas as ferramentas, menos complexo é seu uso. No começo da internet, era preciso dominar inglês. Hoje isso é furado. Tanto que todos usam celular e ninguém tem dificuldade alguma. O segundo ponto interessante é que parece que o brasileiro já não tem um pé atrás com a tecnologia. Ao contrário dos europeus e a Lei de Proteção de Dados (GPDR) [legislação que estipula uma série de regras sobre como empresas e órgãos públicos devem lidar com os dados pessoais da população dentro do bloco europeu] – no Brasil, apesar de termos leis, o brasileiro nunca foi muito cioso. Tanto que ele coloca as coisas mais estapafúrdias online e depois se arrepende. Outra diferença do começo é que hoje estamos o tempo todo conectados. Você recebe “zap zap”, e isso faz parte do seu dia a dia.
Da internet discada à rede de fibra ótica, o Brasil se mantém muito atrás em termos de conexão se comparado à infraestrutura norte-americana e europeia?
Gostaria que tivéssemos fibras óticas nos rincões do país. Porque o alcance da internet por satélite vai longe, mas essa conexão sofre atraso, não dá para usá-la para uma interação rápida. Ou seja, é uma banda estreita apesar da grande cobertura. Agora, passar fibra ótica no interior do país ou em regiões como a Amazônia é algo difícil. Há experiências de fibras submarinas passando por baixo do Rio Amazonas. Mas com fibra é mais complicado de lidar. Enquanto a fibra não chega, tenta-se internet por rádio, satélite, o que for. Na Austrália, por exemplo, que tem o mesmo tamanho do Brasil, mas uma população muito menor, há um anel de fibra ótica que contorna todo o litoral. Já o Brasil tem esse contraste gigantesco entre o que é sertão e cidade. Existem vários “Brasis”. Nossa internet não existe ou não é boa em regiões onde o acesso é complicado, onde a infraestrutura é difícil de ser disseminada por ser um lugar de baixa densidade populacional e limites geográficos.
Qual a sua perspectiva sobre as últimas evoluções da tecnologia na seara das comunicações?
À medida que você vai migrando informações para equipamentos móveis – o celular é um equipamento móvel –, você começa a ficar mais em um cenário de síntese do que de profundidade. Também há um vício cada vez maior. Fica-se, cada vez mais, “grudado” num aparelho. Na época em que se usava o laptop, por exemplo, lia-se com mais atenção um artigo. Não se limitando apenas a manchetes ou chamadas. Da mesma forma, ao responder um e-mail, tomava-se mais cuidado com a redação. Hoje você tem mensagens telegráficas – caso do uso exacerbado de emoticons. Se formos analisar, acho que a tendência é resvalarmos para um mundo cada vez mais superficial, onde se vai menos fundo, apesar de agirmos sobre uma área muito maior. Cada vez mais sua voz está sendo ouvida, seja ela uma cacofonia ou não.
Quais os aspectos positivos dessa superficialidade, da mensagem telegráfica e dessa geração dos 20 e poucos caracteres?
Nunca se escreveu tanto e tão mal. Acho que vamos ter que esperar esse cenário decantar. Certamente é positivo esse poder de expressão que está ligado a broadcasts, a grandes emanadores de opinião. Todo mundo pode falar o que quiser. Ao mesmo tempo, como disse Umberto Eco: a internet deu voz a milhões de tolos. Sabe aquela conversa de bar, onde se contava uma piada e, depois, em casa, o assunto morria? Então, não é isso que acontece quando se publica algo na internet. Se você contar uma piada na internet e ela for chocante, ela vai ser espalhada para deus e o mundo e você terá causado uma comoção muito maior do que pretendia. Ainda falta maturidade dos usuários porque as pessoas ainda estão experimentando. Como as primeiras experiências de uma criança. Como todo mundo ganhou uma ferramenta poderosíssima e nova, levará certo tempo até que ela seja absorvida culturalmente, espero eu.
Estamos, então, ainda numa fase de experimentação?
Essa é a fase da exuberância. Imagina-se que ela vai passar depois de reações como perda de um emprego depois de ter publicado algo indevido etc. Com o tempo, cria-se essa “casca mais grossa” e aprende-se a não cair mais em armadilhas. É claro que é bom que todos tenham voz e que falem. Agora, é preciso estar alerta. Outro dia, fiz uma analogia numa apresentação. Moro em Cotia, ou seja, num lugar com bastante verde, silêncio de automóveis, muitos cachorros. Um lugar onde todos dormem bem. Só que, numa noite, passa uma moto ou acontece uma coisa qualquer e o cachorro começa a latir. Daqui a pouco são 150 cachorros latindo. O primeiro cachorro que começou tudo já está em silêncio porque viu que a moto foi embora, mas ainda há cachorros latindo do outro lado do bairro. O que quero dizer? Esse efeito de emular algo vai na linha do que você está ouvindo sem muito critério – se aquilo era, ou não, de fato um risco.
Seguindo esse raciocínio, constatou-se que os grandes propagadores de fake news fazem parte de grupos de conversa de familiares, no celular. O que pensa disso?
O fato é que nesses grupos você tem mais liberdade para falar bobagem. E o grupo familiar não é realmente fechado. Tem sempre alguém lá, no meio, que vai repassar alguma informação para colegas da escola ou do trabalho. Ou seja, aquilo que nasceu num ambiente mais liberal e aberto acaba vazando. Também temos que ter sempre muito cuidado com o termo fake news. Isso sempre existiu na história da humanidade. Outra coisa: acho que não podemos ser muito rígidos com quem, eventualmente, propaga uma notícia falsa, já que pode tê-lo feito de boa-fé. Agora, quem por malícia a repercute, esse sim é um cara perigoso. Lembro que no início da internet, quando começaram a publicar imagens – porque antes era só texto –, um sujeito difundiu um processo de fazer gatinhos engarrafados. Evidentemente isso era uma mentira, mas já tinha gente falando: “Que crueldade com os animais”. Mas esse é um problema da internet. Nos velhos tempos você lia uma frase num livro e pensava: “O autor está sendo irônico”. Hoje, você lê a mesma frase na internet e a interpreta ao pé da letra.
Se a pessoa não insere uma carinha sorrindo, mesmo que aquilo seja um absurdo, você lê como algo literal. Perdeu-se a sensibilidade das entrelinhas, das camadas. Vemos uma degeneração da linguagem escrita porque você não está conseguindo transmitir a mensagem que queria com o texto.
Quanto à legislação, na Europa entrou em vigor, no ano passado, a Lei de Proteção de Dados (GPDR). O Brasil se espelha nesse contexto?
Culturalmente são posturas diferentes. O europeu não publica foto da família comendo bolo ou de um café da manhã com mingau. Isso não faz parte do dia a dia deles, mas faz parte do dia a dia dos brasileiros. Não estou colocando mérito na jogada, mas os europeus são diferentes. O que acontece aí? Obviamente você não usa um buscador na internet ou mantém uma rede social de graça. Tudo isso custa zilhões de máquinas, cabos conectados etc. Certamente, você faz parte da estrutura desse negócio. E isso não deveria surpreender ninguém. Se eu assisto à televisão de graça na minha casa, vejo propaganda de sabonete, de creme dental. Coisas que sustentam o fluxo de informação que eu recebo. Então, na internet esse modelo está sendo aplicado. Pode ser que não dure eternamente, mas por enquanto dura: utilizam-se buscadores e redes sociais sem pagar por esses serviços porque alguém os sustenta. E quem sustenta tem como objetivo vender algo para você ou fazer uso das suas informações. Isso é regra.
Mas há limites?
Sim. Por exemplo, se você vai sempre ao mesmo restaurante, é razoável que o maître pergunte se você quer a bebida de sempre, se vai comer feijoada... Este é um relacionamento que você tem naquele ambiente. Mas o taxista que te levou para lá, ele não tem que saber que você come feijoada ou que sua bebida é A ou B, porque esse é outro contexto. Então, o que essa lei [Lei de Proteção de Dados] está dizendo é que os dados só podem ser colhidos com sua autorização e devem estar relacionados à transação que você está fazendo. Não é pelo fato de existir, que um dado pessoal pode ser colhido e usado de qualquer forma.
Há especialistas que dizem que a privacidade na internet não deveria existir. O que pensa disso?
Havia um mito na internet original de que seria possível ficar anônimo. Uma mentira. Na internet tudo o que você faz é porque o outro lado deixa. O exemplo que dou é o seguinte: se você liga uma estação de rádio no seu carro, a estação não sabe que você está sintonizado nela. Mas, se você ouvir essa estação no seu celular, ela vai saber porque seu IP [Internet Protocol é um número que identifica um dispositivo em uma rede] está ali. O risco é que você fique completamente devassado, que esse “lado de lá” saiba mais sobre você do que você imagina. Então, se você concorda com os termos para ter seus e-mails armazenados num determinado lugar, tudo bem. Agora você pode não querer que esse serviço repasse seus dados para outra pessoa. Se acesso a Amazon para comprar um livro, é razoável que ele reconheça o que eu gosto e que me sugira outros títulos. A privacidade depende muito do contexto. O perigo é que alguma informação minha seja usada fora de contexto. E o que a lei brasileira fala é: aceito essa troca, esse escambo de dados pessoais, mas há limites para repassá-los ou revendê-los.
Tudo tem seu lado positivo e negativo. Esse é o problema. Toda vez que você acumula dados de alguém, um dia, fatalmente, eles irão vazar. Não é que a pessoa de propósito deixou vazar, mas uma hora alguma coisa pode acontecer. Então, minha sugestão é que, num RG, por exemplo, centralizassem apenas o que interessa. Porque, caso se acumulem mais dados, mesmo que a intenção seja facilitar sua vida em termos de burocracias etc., há um risco muito grande. E hoje as multas da lei brasileira relacionadas à difusão de dados pessoais são grandes.
Quanto ao Marco Civil da Internet Brasileira, ele é satisfatório?
O Marco Civil [lei em vigor desde junho de 2014, que regulamenta a utilização da internet] foi uma grande conquista nossa [a exemplo dos seguintes direitos: a privacidade e a proteção de dados do usuário na internet, incluindo e-mails e chats, só podem ser violadas em investigações criminais; e sites só podem coletar dados com consentimento do usuário – que deve ser informado com clareza sobre como eles serão utilizados]. Grandes nomes que estudam e atuam na internet elogiaram o Marco Civil. Digamos que somos precursores nessa história. O Brasil conseguiu estabelecer uma boa regra do jogo. Exemplo de uma vantagem do nosso Marco Civil em relação à legislação dos Estados Unidos. O Marco Civil segue a LGT [Lei Geral de Telecomunicações], para quem a internet é um serviço de valor adicionado sobre a estrutura de telecomunicação. Então, a internet não é regulada pela reguladora de telecomunicação, que é a Anatel, porque ela é uma camada sobre as telecomunicações. Você precisa de licença para passar um cabo ótico por uma cidade, precisa de licença para ter uma antena de rádio ou de tevê, mas você não precisa de licença para fazer um streaming na internet porque você está usando um recurso que alguém já licenciou. O que aconteceu com o Marco Civil da Internet Brasileira: está dito que essa estrutura de transporte tem que ser neutra. Ou seja, eu não posso entrar na sua casa, mas posso chegar até a porta dela, e as ruas têm que ser neutras. Dessa forma, a internet é, teoricamente, feita por ruas que te levam para todos os lugares, e que não privilegiam um destino até você. Já nos Estados Unidos, a distinção entre telecomunicações e internet não ficou clara desde o começo. Ainda que nossa lei possa mudar, estamos numa situação mais estável.
Quanto à propagação de sensores em objetos, casas, estradas... Como vê essa questão?
Por trás de tudo hoje há um cérebro eletrônico funcionando. Então, a disseminação de sensores, como dos pedágios em estradas, e a disseminação de dados, somados a uma comunicação sem fio que não precisa ser por telefonia, mas por Bluetooth ou Wifi, por exemplo, vejo uma transformação grande. Certamente é cômodo comandar sua casa remotamente, porque todas as coisas se falam, como geladeira, fogão, televisão. Vamos supor que na sua geladeira, os produtos tenham RFID [Identificação por radiofrequência é um método de identificação automática por sinais de rádio, recuperando e armazenando dados remotamente por meio de dispositivos denominados etiquetas]. Se você retira a última cerveja de uma dúzia que havia comprado semana passada, a geladeira automaticamente encomenda ao supermercado mais uma dúzia. Por outro lado, a sua balança pode avisar a seu médico que seu peso aumentou e seu médico pode avisar a geladeira que ela não pode dar aquele comando ao supermercado. Quer dizer, você tem um ambiente em que as coisas se comunicam. Agora, como impedir que essas mesmas coisas extraiam dados de você?
Quais mudanças esperar com a chegada da próxima geração de conexão móvel sem fio, a 5G?
A tecnologia 5G é uma das ferramentas da Internet das Coisas [ou IoT, conceito que dispõe que a maioria dos dispositivos que usamos diariamente está conectada entre si e pela internet, sem tanta intervenção humana], mas não precisa haver 5G para que exista a Internet das Coisas. Na sua casa, você não vai usar o 5G para falar com sua geladeira. Você vai usar o Bluetooth, por exemplo, sem precisar de assinatura ou pagamento específico. O agronegócio, por exemplo, vai se beneficiar da IoT porque haverá um sensor de umidade que diz para regar a terra que está seca, enquanto outro sensor diz que está na hora de plantar. Então, há uma “mistureba” de infraestruturas para permitir a IoT.
Certamente você, andando na rua, vai falar com 5G, mas outros dispositivos falarão com outras características. O interessante é que, pelo menos por enquanto, as “coisas” falam pouco – como a temperatura, a capacidade etc. Os protocolos para a IoT, em geral, se baseiam em baixa potência. Basta pensar que não é viável, no meio de uma plantação, trocar um sensor a cada semana. Então, em geral, essas são tecnologias de baixo consumo. Pode ser que no futuro isso mude, mas por enquanto é assim.