Postado em 13/12/2018
Por amilton de azevedo*
Dois andarilhos vagam por um mundo devastado. Motivados por um sonho, buscam o caminho a seguir. São diversas as possibilidades do desenvolvimento de tal premissa. Em “Pé na Curva”, da Cia de 2, a trajetória do espetáculo joga a todo momento com as expectativas construídas por ele mesmo.
O ambiente desolado é representado por uma cenografia sintética e repleta de leituras possíveis. Trata-se de uma espécie de cruz de ossos, construída no centro do palco sobre um pequeno morro de terra. A sonoplastia e a iluminação estabelecem uma atmosfera inicial densa e misteriosa. Na entrada dos personagens, o público ainda tateia qual será o tom da encenação. A maquiagem das figuras é expressionista, sugestiva – com figurinos em frangalhos, são dois seres cadavéricos que circundam a cena.
Aos poucos, a narrativa nos apresenta um par de palhaços. No entanto, o humor presente em “Pé na Curva”, ainda que fazendo uso de mecanismos e gags tradicionais da palhaçaria, não faz com que essa seja uma obra leve. A comicidade serve de respiro em alguns momentos, mas os procedimentos adotados também deslocam o espectador para um lugar de incômodo.
Infeliz e Tolo, os personagens interpretados respectivamente por Jean de Oliveira e Jonas Di Paula, parecem se relacionar dentro da lógica arquetípica do Augusto e do Branco. Porém, na dramaturgia e direção de Di Paula, o dado mais constante no espetáculo é a subversão dos horizontes de expectativa estabelecidos. Assim, ao mesmo tempo que exagero afirmar que os tipos construídos por Oliveira e Di Paula são invertidos ao longo da obra, é também inegável o trânsito dessas figuras por ambos os universos – a troca de figurinos que acontece durante uma cena também parece sugerir isso.
Além do jogo com os tipos clássicos, há também um aspecto depravado e tremendamente agressivo que se apresenta aos poucos. Como se a máscara do palhaço fosse dando espaço à bufões grotescos; uma desumanização das figuras frente à sua situação desolada.
“Pé na Curva” parte de referências claras do chamado teatro do absurdo. Mais especificamente, é impossível não pensar nas obras de Samuel Beckett. Há, sem dúvidas, algo de “Esperando Godot” na encenação. Seja na própria premissa, na relação da dupla; até mesmo na cenografia. No entanto, a Cia de 2 não busca uma refação do ideário deste tipo de teatro; mas sim, as possibilidades abertas por esta tradição para a construção de uma cena autoral.
Estruturalmente, o absurdo beckettiano parece se atualizar frente à nossa realidade – não mais o contexto do pós-guerra, mas sim a pós-modernidade. O sem-sentido segue presente, com pitadas cada vez mais assombrosas de irracionalismo. A construção de uma situação de desenvolvimento cíclico ganha agora a imagem de uma espiral. Na passagem do tempo – sugerida sutilmente em “Pé na Curva” durante recortes de luz e na lida com objetos presentes na terra, não sendo possível estabelecer qual o período de duração das ações representadas – há não o caráter de repetição, mas de agravamento dos acontecimentos.
De maneira perspicaz, o espetáculo também lida de forma diversa com a consciência e o estado das personagens. Não mais a espera de Vladimir e Estragon por um Godot desconhecido; mas sim, a caminhada motivada por um sonho não revelado ao público. O esvaziamento da possibilidade de sonhar, citada na dramaturgia, potencializa, então, essa mobilização trazida pelo sonho compartilhado por Infeliz e Tolo. Avesso à espera, é na ação impensada rumo a algo desconhecido – ao menos para os espectadores – que os dois se movimentam. Um misterioso objeto carregado em uma cadeira de rodas opera quase como um “anti-Godot”: ameaçado e protegido pelas figuras, sua importância não compreendida abre-se para uma infinidade de leituras e atiça a curiosidade.
*amilton de azevedo é artista-pesquisador, crítico e professor. Escreve para a Folha de S. Paulo e para sua página, ruína acesa. Responsável pela disciplina "Estudos sobre o ensino do teatro" na graduação do Célia Helena Centro de Artes e Educação.