Postado em 06/12/2018
Por Romilda Motta*
De forma espetacular e, ao mesmo tempo, ruidosa, o século XXI tem evidenciado o quanto é imprescindível acompanhar os encaminhamentos da História. No que toca às mulheres – categoria não homogênea – percebemos que demandas que vinham sendo defendidas publicamente por elas, desde o século XVIII, continuam atuais e urgentes.
No contexto recente do nosso país – mas não específico - a constatação tácita de que a história não é linear e que é preciso atentar para os reveses. Dentro da perspectiva de gênero, nota-se que lutas históricas ligadas a uma série de direitos fundamentais, conquistados arduamente, encontram-se ameaçados. É desalentador acompanhar o crescimento e a reverberação de um discurso machista e muitas vezes misógino que minimiza a(s) violência(s) contra a mulher, insiste na objetificação do gênero feminino, despreza e limita as lutas pelos direitos reprodutivos, pela equidade salarial e que teima em reforçar lugares e papeis nos quais elas ficam circunscritas ao espaço doméstico. Diante de uma realidade tão preocupante, resta-nos a conclusão de que, se não pudermos avançar, precisamos resistir e enfrentar tais retrocessos.
A proposta de atividade apresentada pelo Grupo de Pesquisa em Gênero e História (USP) ao Sesc Avenida Paulista “Mulheres que escrevem: Para o mundo, para a História” surgiu a partir da constatação de que, a despeito do grande interesse do público em geral sobre a temática feminista e de gênero, há ainda um desconhecimento dos textos que marcaram as principais tendências do pensamento de mulheres ao longo do tempo.
A seguir, apresento uma lista de obras produzidas por mulheres que refletiram sobre a questão em diferentes tempos históricos. Claro está que esse é sempre um exercício desafiador e, de algum modo, arbitrário. Para incluir, precisa-se realizar exclusões que, noutras perspectivas, os excluídos não seriam cabíveis ou vice-versa. De modo que preciso justificar o porquê da seleção apresentada.
Foi-me pedido 7 itens mas optei por elencar 6 obras que são consideradas “clássicas” e duas (apresentadas em um mesmo tópico, pois são textos curtos e introdutórios a reflexões necessárias para demandas caras) dentro do tema da História das Mulheres e das Relações de Gênero. De modo geral, são textos que significaram expressivos passos na ampliação da reflexão sobre direitos, liberdade de pensamento, a necessidade da autonomia e do protagonismo e a importância de refletir, de forma interseccional, sobre as opressões cotidianas.
1- Mary Wollstonecraft - Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo, 2016. (1ª ed. 1792).
Escrita em plena efervescência das ideias suscitadas pela Revolução Francesa, a obra reflete sobre a situação da mulher na sociedade, suas implicações e suas consequências. Texto instigante e incrivelmente atual é considerado pioneiro e propulsor da luta feminina/feminista pela igualdade de direitos.
2- Simone de Beauvoir – O segundo sexo (2ª ed.). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009. (1ª ed. 1949).
Texto fundamental para refletir e questionar acerca dos papeis e lugares estabelecidos para o sexo feminino. A autora desenvolve a tese de que a mulher não é o “ outro” ou “segundo sexo” por razões naturais e imutáveis e, sim, por um leque de processos sociais, culturais e históricos que sedimentaram tal situação. Ao questionar o “eterno feminino”, Beauvoir abre a discussão de que, se foi criado socialmente, pode e deve ser desconstruído.
3- Betty Friedan. Mística Feminina. Rio de Janeiro: Editora Vozes Limitadas (1ª ed. 1963).
Obra inspiradora para as feministas da “segunda onda” (anos 1960/1970). Friedan reflete sobre quais elementos contribuíam para o reducionismo dado à vida de muitas mulheres. Ao discutir representações e imagens da “americana moderna”, construídas pelo sistema capitalista, como Beauvoir, colocou em xeque a ideologia do “eterno feminino”, demonstrando a necessidade de sua desconstrução para que as mulheres pudessem se sentir sujeitos plenos.
4- Virgínia Woolf. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014 (1ª ed. 1929).
Apesar de oriunda de um grupo social favorecido, Woolf insiste no posicionamento político iniciado por suas antecessoras, sublinhando o cenário desfavorável às mulheres. A escritora inglesa aponta a ausência de recursos financeiros e a legitimidade cultural como limitações. Ou seja, reflete em que medida ser mulher acarreta dificuldades para a atuação no campo da cultura, espaço no qual, segundo as palavras de Heloísa Pontes, foram – e, em alguns casos, permanecem – toleradas ou vistas como “intrusas”.
5- Ângela Davis. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. (1ª ed. 1981).
Escrito pela filósofa, ativista feminista e uma das principais defensoras dos direitos da população negra nos EUA. Sob o viés interseccional (conexões entre racismo, sexismo e capitalismo) a autora analisa as condições de negros e negras nos EUA discutindo as imbrincadas combinações de opressões. No Brasil, suas contribuições tornaram-se ainda mais atuais, diante do florescimento do pensamento feminista – especialmente o feminismo negro - nas últimas décadas.
6- Elisabeth Badinter. Um amor conquistado. O mito do amor materno. São Paulo: Nova Fronteira, 1985. (1ª ed. 1981).
Questionando o “mito do amor materno”, entendido por alguns (as) como “instinto maternal” e apresentado como algo inato natural o amor materno não constitui um sentimento inerente à condição de mulher. Na obra, Badinter defende não ser o amor materno algo inerente à mulher e, sim, um amor construído, dependendo, em grande parte, de um comportamento social, que variaria de acordo com a época e a cultura.
7- Chimamanda Ngozi Adichie – Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014;
Chimamanda Ngozi Adichie - Como educar crianças feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Duas produções que atingem diferentes públicos. Por meio de uma linguagem acessível ao público não iniciado na temática de gênero e feminismo, a escritora nigeriana explora a desconstrução de mitos sobre o Feminismo, apontando para a necessidade de tod@s serem feministas e iniciar o exercício com as crianças. O argumento embasa-se no fato de que, assim como o machismo não está restrito aos homens, as perspectivas apresentadas pelo feminismo não podem e nem devem ficar restritas às mulheres e que as relações entre os gêneros terão ganhos se este fato ocorrer.
*Romilda Motta é graduada em História pela USP, sendo mestre e doutora em História Social pela mesma instituição. Seu mestrado, intitulado "José Vasconcelos - As Memórias de um profeta rejeitado'", foi publicado pela Alameda Editorial, em 2015. Seu doutorado teve como título "Práticas políticas e representações de si: os escritos autobiográficos da mexicana Antonieta Rivas Mercado e da brasileira Patrícia Galvão/Pagu". Professora com larga experiência na rede privada e membro do Grupo de Estudos História e Gênero do Departamento de História da USP.