Postado em 05/12/2018
Para muitos, 1983 parece um ano de uma era longínqua. Marty McFly ainda não tinha embarcado no DeLorean, John Connor ainda não era nascido e o T-800 não tinha com o que se preocupar.
Os personagens marcantes daquele ano tinham uma resolução um pouco menos arrojada. Um herói retangular que pulava de cipó em cipó numa floresta quadriculada, uma “arminha” que defendia o planeta de uma invasão alienígena disparando mísseis de pixels, um carrinho rígido e barulhento que quando chegava na fase da neve não havia quem não derrapasse, entre outras formas geométricas que enfrentavam missões muito complexas.
Se alguma destas descrições te parece familiar, é porque você também passou horas na frente de um televisor de tubo (provavelmente em preto e branco) fazendo bolhas no dedão jogando Pitfall, Space Invaders e Enduro, além de outros tantos títulos de cartuchos para o console Atari 2600 e seus clones.
O Atari já estava presente em nosso imaginário, pois alguns consoles tinham sido trazidos pelos turistas brasileiros com mais recursos em suas viagens para fora do país ou, simplesmente contrabandeados. Com estes consoles presentes por aqui, logo a indústria brasileira encontrou um método de burlar o protecionismo e fabricou os primeiros clones de Atari.
Nolan Bushnell, um dos fundadores da Atari (conhecido por ter sido o primeiro e único chefe de Steve Jobs), sabia que o Brasil era um mercado em potencial. A Polyvox (empresa do grupo Gradiente) conseguiu licenciar a marca Atari para fabricação no Brasil após longa negociação e, finalmente, em 1983 os primeiros consoles fabricados oficialmente chegam às lojas.
O videogame foi o sonho de qualquer criança e adolescente dos anos 80, para desespero das mães e pais daquela época. A única TV da família estava com seu status quo em risco. A sala nunca mais seria a mesma. Amiguinhos formariam motim na casa do vizinho da rua que tivesse o game. Primas e primos, tias e tios, cunhados e parentes distantes, todos formariam legiões em torno do proprietário de Atari que conhecessem. Outubro de 1983 foi marcado pela imensa procura pelo Atari nos grandes magazines, que se viram forçados a montar lista de espera para avisar da chegada de novos consoles. No natal, o departamento de recebimentos de pedidos do Papai Noel deve ter sido inundado.
O documentário “1983 - O Ano dos Videogames no Brasil”, dirigido por Artur Palma e Marcus Chiado Garrett, discorre sobre este período e sobre como o console impactou no mercado e na cultura. O filme, de 2017, foi realizado por meio de financiamento coletivo online com a ajuda de 180 entusiastas.
Para celebrar toda essa trajetória, repleta de diversão e nostalgia, há dois conteúdos inéditos te esperando: a playlist #GEEK, que apresenta os maiores sucessos dos games arcades da época, e uma entrevista com Marcus Vinicius Garrett Chiado, que além de dirigir o documentário, é coeditor da revista “Jogos 80” e autor de diversos livros sobre games da década de 80.
Marcus Garrett - Foto: Divulgação
EOnline: Como foi e quantos anos você tinha quando teve o primeiro contato com o Atari?
Marcus: Eu ganhei meu Atari no Natal de 1983, ou seja, no ano do lançamento oficial no Brasil pela Polyvox, subsidiária da Gradiente. Eu tinha 10 anos de idade. Antes, porém, ouvíamos falar daquele videogame por meio de amigos ou parentes que, por sua vez, tinham amigos ou familiares que haviam trazido o console na bagagem quando voltaram dos E.U.A., ou líamos sobre ele em revistas da época, tais como a Micro & Video e a Vídeo News. No meu caso, tenho três irmãos (por parte de pai) mais velhos. O mais novo deles, o Mauricio, costumava jogar Atari na casa de um tio abastado que já possuía o console desde o final dos anos 70. Vivemos tempos difíceis, uma época sem YouTube e sem Google, em que não era nada fácil estar a par das novidades, mas "sobrevivemos" e estamos aqui para contar a história!
EOnline: Você lembra como foi a chegada do Atari na sua região? Como foi a reação na sua escola, no seu bairro, na sua família?
Marcus: O Atari foi uma febre, todo mundo queria ter, jogar, experimentar, era como se um disco voador houvesse pousado na sala de casa. É preciso entender que, devido a algumas políticas restritivas daquele período, tais como a Reserva de Mercado, o Brasil vivia atrasado - anos de atraso! As coisas não eram como hoje. Uma estreia do cinema, por exemplo, levava mais de 6 meses para chegar aqui; atualmente, os filmes são praticamente lançados de maneira simultânea nos E.U.A. e no Brasil. Falamos de outra época, de outro mundo, quase de outro planeta! A dificuldade de se conhecer as coisas, de ter as novidades, era tamanha que despertava nas pessoas um desejo reprimido imenso. Sendo assim, quando conseguíamos possuir uma novidade, um lançamento, saboreávamos o momento, tornava-se algo muito especial. Com o Atari não foi diferente, vivemos o "estouro" daquele novo brinquedo, daquela nova forma de entretenimento em nosso país: o tal do videogame.
EOnline: Na sua opinião, por que o Atari teve esse efeito de conquistar tanta gente na época? E por que essa paixão sobrevive até hoje?
Marcus: Tratava-se de um desejo reprimido, de uma vontade imensa de ter as coisas. Nos E.U.A., devido ao fenômeno conhecido como Crash dos Videogames/Crash de 1983/Crash de 1984, o Atari estava morrendo, mas no Brasil "era o que se tinha", foram quase 7 anos de atraso em relação ao mercado que o criou... É uma eternidade! Viver no Brasil daquela época não era fácil, a inflação muito alta, o dinheiro desvalorizava quase que diariamente, os salários eram baixos, mas as pessoas deram um jeito de ter o videogame: se não fosse o Atari oficial da Polyvox, elas adquiriam um clone de outra marca, mais baratos, dentre as diversas que existiam: Dactar (Milmar), Dynavision (Dynacom), Supergame (CCE), VJ 9000 (Dismac) e o Onyx Junior (Microdigital). Além das criativas propagandas de TV e nas revistas da Polyvox, o boca-a-boca foi um dos grandes responsáveis pela disseminação da febre. De novo: todo mundo queria ter!
EOnline: Como foi o impacto dos games como o Atari na cultura jovem da época? Teve efeitos no modo de vestir? Na música? Nos lugares? Tinha alguma identificação de quem era jogador? Comunidades de jogadores foram formadas? Troca de cartuchos? Havia grupos que competiam? Você fez parte de algum? Havia rivalidade entre adeptos de jogos diferentes (tipo Pitfall X H.E.R.O)?
Marcus: Com a crescente popularização do Atari e o aparecimento das produtoras nacionais de cartuchos, os chamados "clones" (produzidos sem licença dos detentores dos direitos autorais), logo se formou um "ecossistema". As videolocadoras prontamente perceberam o potencial da novidade e, além de locação de filmes, passaram a alugar cartuchos, e foi justamente quando o boom desses estabelecimentos aconteceu. As locadoras viviam cheias, às sextas-feiras a garotada alugava jogos de Atari e só os devolvia na segunda. Elas acabaram virando "clubes sociais", a meninada se reunia lá, batia papo, descobria as novidades, contava e ouvia boatos e participava de campeonatos - algo que se estendeu também para a hora do recreio nas escolas, quando começou o troca-troca de cartuchos! Não havia tantas rixas entre grupos, eu me lembro de donos do Atari versus donos do Odyssey, o console da Philips, que se "estranhavam" um pouco, mas no fim tudo virava uma enorme brincadeira. O videogame chegou com tudo em 1983 e 1984, as revistas e os jornais também celebravam a novidade com artigos e entrevistas, gibis e quadrinhos traziam historinhas em que os games apareciam, e até a Rede Globo colocou o Atari em lugar de destaque: na abertura da novela "Transas e Caretas", exibida em 1984. Foi uma febre realmente! Apesar de menino à época (sou de 1973), eu me sinto privilegiado por ter testemunhado tudo isso em primeira mão!
EOnline: Hoje ainda existem comunidades que se encontram pra jogar Atari?
Marcus: Sim, há diversos grupos de um fenômeno conhecido como Retrogaming, ou seja, jogos retrô. As pessoas colecionam os aparelhos que tiveram na infância - ou que, por algum motivo, não tiveram à época - e os tratam como verdadeiros tesouros. Há diversos grupos tanto no Brasil - como o Canal 3 e o VideoMagia - quanto no exterior, onde há colecionadores que gastam fortunas e têm coleções que ocupam vastos cômodos das casas. Em nosso país existem alguns grandes colecionadores também, destaco os amigos Alex Mamed, Edson Godoy, Thiago Hungria, Ricardo Wilmers e Giovani Gilão, além do finado Norian Munhoz Jr.
EOnline: Depois do Atari, você continuou jogando em outros consoles? Que games? Ainda joga?
Marcus: Em realidade, em conjunto com o Atari, tive um videogame produzido pela Sharp do Brasil, o Intellivision, originário da Mattel Electronics, braço da fabricante americana de brinquedos. Depois deles, fiquei apaixonado por jogos de computador, mas não os jogos dos PCs, falo de jogos de máquinas mais antigas e "rudimentares", o Apple II, o ZX Spectrum, o MSX e o Amiga, que foram produzidos em nosso país ora de maneira não oficial (clones), ora oficial ou apenas "nacionalizados", caso do Amiga. Eu me diverti muito com o Exato Pro, o TK95, o Expert e o Amiga que tive, e não queria mais saber de videogames naquela época (entre 1985 e 1993). Hoje, ainda que eu não colecione exatamente, possuo alguns aparelhos que tive à época e outros que não, caso do ColecoVision, console que desejei muito ter em 1983 e 1984 cujo preço era proibitivo, além de alguns computadores antigos.
EOnline: O documentário foi financiado por crowdfunding. Como foi este processo? Quando tempo demorou desde a ideia até a finalização? Qual era o perfil dos colaboradores? Você teve contato com eles? Houve algum encontro com eles para lançamento do documentário?
Marcus: Sim, optamos por lançar a ideia via financiamento coletivo, algo que estava - e ainda está - em moda. Assisti a alguns documentários estrangeiros no passado, em especial "Atari: Game Over" e "From Bedrooms to Billions", e, tendo escrito meus livros, eu me perguntava: "por que não realizar um documentário nosso, brasileiro, que contasse a nossa história?". Isso ficou martelando na minha cabeça por mais de um ano... Foi quando comentei com um amigo em comum, o André Forte do Kapoow!, e ele me apresentou ao Artur Palma da produtora ZeroQuatroMidia, já que o rapaz também tinha a ideia de produzir algo do gênero. Como diz a expressão, "juntamos a fome com a vontade de comer". Comecei imediatamente a escrever o roteiro, a contatar os possíveis entrevistados, a verificar amigos que nos ajudariam com outras coisas, e bolamos, o Artur e eu, a campanha do Kickante, que ficou 30 dias no ar.
Foi um sucesso! Levantamos pouco mais do montante pretendido e o resto é história... Depois de 2 anos e meio de muito trabalho, "suor e lágrimas", o filme ficou pronto e estreou no MIS - Museu da Imagem e do Som em setembro de 2017!
Houve duas sessões, a primeira, "secreta", para os apoiadores da campanha, equipe e convidados, e a segunda, aberta, para o público. Só posso dizer que foi um dos dias mais especiais da minha vida! Pena que o Artur não pôde estar presente, ele se mudou para o Canadá durante a produção...
EOnline: Há alguma curiosidade sobre o jogo que ficou de fora do documentário? Histórias como o enterro de cartuchos do E.T. ou outras?
Marcus: A primeira edição do documentário ficou com 6h30 de duração... Foi uma luta para que reduzíssemos a metragem para 2h23, sendo assim, muita coisa ficou de fora realmente, não havia como. Contudo, a essência da história, a informação que nos propusemos a passar (com curiosidades, "causos" e novidades em primeira mão), está lá. Recomendo, a quem queira se aprofundar em detalhes mais técnicos, a segunda edição dos meus livros em volume único: "1983+1984: Quando os Videogames Chegaram". Há à venda no site da loja Playtoy, mas a versão em PDF, grátis, está disponível para download no site Memória do Videogame (em "novos livros").
EOnline: E o Atari VCS? Que você acha dele?
Marcus: O Atari é como aquele velho amigo de infância de quem nós nunca esquecemos e jamais nos esqueceremos. Ele conhece bem a gente, esteve sempre ali, disponível, passou incontáveis horas ao nosso lado e viu a gente crescer. É um amigo muito especial - embora fosse chamado de "Inimigo" na campanha publicitária que a DPZ preparou para a Polyvox...
EOnline: E por fim, polêmica: Na sua opinião, qual o melhor jogo do Atari? E qual o pior?
Marcus: Eis uma pergunta muito difícil, mas muito mesmo. Acredito que os melhores, devido tanto ao talento dos programadores quanto ao amadurecimento do console em si, são os da produtora Activision. Destaco: River Raid, Enduro, Seaquest e Pitfall!. Jogos criativos, bonitos e tecnicamente impressionantes. Os piores jogos são os que foram lançados na fase final da vida do videogame, geralmente creditados como "culpados" ou que colaboraram com o Crash de 83. Há muitos jogos ruins... Aliás, E.T. é melhor que muitos desses jogos.
Esta edição da #GEEK presta homenagem ao som inconfundível dos jogos 8bit, que logo se tornou um estilo recorrente na produção musical. A playlist traz um breve compilado de temas musicais dos jogos, versões de canções pop em 8bit e composições especialmente feitas com esta estética.
Se você também assoprou um cartucho, aperte o play!
Você pode escolher onde escutar - a mesma playlist está disponível no Spotify e no Deezer.