Postado em 29/11/2018
*Por Ligiana Costa
E no inicio era o sopro. Depois do sopro, o homem cantou. E, para o sopro, construiu seu primeiro instrumento. O espetáculo Sopro Transcendente foi um encontro inédito provocado pela curadora do Festival Sesc de Música de Câmara num intuito louvável: reunir dois grupos de estudos e práxis de música de câmara atuantes na cidade de São Paulo atravessando quatro séculos de música e ainda de quebra nos presentear (e presentear também estes jovens músicos) com a estreia mundial de uma peça de Michelle Agnes Magalhães.
Quem abre o concerto são exatamente as vozes, elas e o sopro. Ar. E mais que isso, quem abre é Zarlino, o teórico supremo da música contrapontística e dos sistemas de afinação. César Villavicencio (que conheci como colega no Conservatório Real de Haia) sempre foi um visionário, uma ponte direta da renascença ao século XXI ou XXIII. É dele a concepção do GReCo (Grupo de Pesquisa de Música da Renascença e Contemporânea), um consorte impressionante de toda a família de flautas doces, viola da gamba e cantores que vale a pena ser sempre prestigiado. Sopram todos, cantores e flautas dobram vozes numa prática que era comum na época de Zarlino.
Entra então em cena o Aura Ensemble, grupo de 14 sopros que nasce para este concerto mas que já prenuncia vida longa. Louvável e bem sucedido o esforço dos músicos de realizar as melodias de Bach (arranjadas por Michelle, compositora residente do grupo) sem vibrato. Sei bem que, por não se tratarem de instrumentos de época, tal quesito se torna ainda mais difícil de ser executado.
Também impecável o refinamento dos músicos ao executar dois movimentos da famosa Gran Partita de Mozart e o peso surpreendente do arranjo para sopros do primeiro movimento da Sétima de Beethoven.
Não poderia deixar de destacar o jovem oboísta (e, deuses da música, bem sabemos o quão este instrumento é ingrato!) Dereckson das Graças com afinação perfeita, fraseado tocante na medida certa e brilho nos olhos. Aliás, todo o grupo parecia sorrir pelos olhos pela felicidade de fazer música juntos, em excelentes condições e numa sala cheia!
Amarrando toda a coisa de forma generosíssima, à frente de todo o espetáculo, o fagotista Fábio Cury. Além de excelente músico (o fagote é sem dúvidas seu melhor amigo e brinquedo preferido, em certos momentos parece que estão conversando) e ousado em suas escolhas, Fábio é um mestre que sabe da importância de encontros musicais para a formação de novos músicos.
É de encontro que se trata a última peça da noite, a estreia mundial de The Grand Can(y)on de Michelle Agnes Magalhães com a colaboração de Frédéric Bevilacqua, ambos ativos no Ircam de Paris. Os 8 minutos de música inédita de Michelle, criados especialmente para a (improvável mas incrível) junção dos dois ensembles da noite, é um ode ao sopro. Celulares amarrados aos braços dos músicos captam seus movimentos e sussurram, sopram, cochicham como se fossem capazes de respirar (e quem disse que não são?). Melodias atonais em instrumentos e seus predecessores são, por fim, interrompidas por uma citação de uma melodia de Barbara Strozzi, compositora italiana do século XVII tocada por Fábio em seu fagote e Iara Ungarelli na viola da gamba. Muito vento no palco. Também pudera, acabávamos de presenciar um poderoso encontro entre uma compositora do passado e uma vivíssima. Quem conhece o vento sabe de seus poderes, né, Pã?
*Ligiana Costa é cantora, compositora e musicóloga com especialidade em ópera italiana do século XVII pelas universidades de Tours e Milão. Seu mais recente livro, o Corego, publicado pela Edusp, venceu o prêmio Flaiano (Itália) de 2018.
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