Postado em 29/11/2018
Proibida de competir no futebol, Maria de Lurdes Mutola
encontrou no atletismo um novo caminho
para o triunfo no esporte
Ex-atleta de Moçambique, Maria de Lurdes Mutola percorreu uma trajetória renomada no atletismo. Corredora dos 800 metros com dez títulos mundiais entre 1993 e 2006, medalha de ouro olímpico em Sidney 2000, ela esteve no Sesc Pompeia como convidada da Semana Move, evento que reforçou a importância da prática de atividades físicas para a saúde e o bem-estar. Na ocasião, a atleta conversou com a Revista E sobre os momentos mais marcantes de sua carreira.
Foto: Leila Fugii
O futebol sempre foi minha primeira paixão. Um treinador me convidou para o time dele: o Aviador. Comecei a jogar federada com os meninos. Éramos crianças e não tinha muita diferença. Treinei todos os dias e aprendi a ser disciplinada com o futebol. Comecei a jogar na equipe. Depois de uma sequência de cinco jogos, havia uma partida decisiva contra um time chamado Ferroviário.
Lembro bem desse jogo. Marquei o gol da vitória e o treinador do time perdedor recorreu à federação desportiva para anular a partida com a justificativa de que o gol tinha sido marcado por uma mulher. A justificativa foi aceita, perdemos os pontos e meu time foi desclassificado. Assim que a decisão se tornou pública, os jornalistas começaram a me procurar e noticiaram o ocorrido dando destaque à minha história. Eu era jovem e não entendia muito bem o que havia acontecido, só queria jogar futebol, mas o futebol feminino não era muito competitivo em Moçambique. Lá teria que jogar por diversão e não em campeonatos, que era meu objetivo.
Quando meu clube foi desclassificado e a história cresceu, eu estava proibida de jogar pela federação de futebol de Maputo. Ficamos sem entender por que a federação me impediu de jogar, mas o fato é que, quando um clube grande foi ameaçado e perdeu por um gol feito por uma mulher, não pude mais jogar futebol na liga masculina.
O jornal local repercutiu e o técnico de atletismo José Craveirinhas leu a história e me procurou. Eu não conhecia atletismo, Moçambique não era um país com tradição em atletismo. O Zé Craveirinhas me procurou em casa e me chamou para treinar atletismo, uma espécie de teste. Ele me explicou que era uma modalidade na qual eu poderia representar meu país nos jogos. Eu decidi tentar.
O técnico foi paciente e explicou para meu pai que o atletismo podia ser uma alternativa ao futebol. Treinei por dois dias, o filho do Zé Craveirinhas foi meu primeiro treinador em Maputo. No início da prática do atletismo meu corpo reclamou, começou a doer e eu desisti uma semana depois de ter topado o convite.
Fiquei em casa por um tempo e o treinador me procurou novamente. Lembro-me bem desse dia. Quando ele chegou, eu estava jogando futsal no bairro. Expliquei que não tinha me identificado com a modalidade e o local de treino ficava a mais de dez quilômetros de casa. Não era todos os dias que eu tinha dinheiro para transporte. E, como eu era criança, meus pais davam o dinheiro para o transporte, eu comprava doces e preferia caminhar até o local do treino.
O meu ponto forte era a velocidade, por essa razão o meu treinador me procurou para aproveitar no atletismo a velocidade que eu demonstrava no futebol. Pra mim, foi o fim do mundo ter que parar de jogar no campeonato. Meu sonho era jogar futebol, meu treinador havia me prometido que quando eu fizesse 18 anos iria jogar em Portugal, mas reconstruí esse sonho no atletismo. Em vez de me levar direto à rotina dos treinos, o treinador me mostrou vídeos dos Jogos Olímpicos com os grandes atletas. Assisti no videocassete como eram os jogos, os estádios cheios, atletas sendo aplaudidos.
A partir desse dia, fiquei emocionada e decidi investir no atletismo. Então, quando não podia treinar no local, eu treinava no bairro mesmo. E, em 1988, fui eleita para representar Moçambique nos jogos africanos, em Botsuana. No mesmo ano participei dos Jogos Olímpicos na Coreia do Sul, o que era muito importante para mim. Fui escolhida pela Confederação Moçambicana de Atletismo e, antes dos Jogos Olímpicos, fomos para a Argélia, nos jogos africanos. Depois, para Portugal treinar e fazer a preparação para as Olimpíadas da Coreia, em Seul.
Fiquei em sétimo lugar nos Jogos Olímpicos de Seul, mas, além do esporte, ganhei uma bolsa para estudar nos Estados Unidos e realizei meu sonho de estudar inglês. Não foi fácil, porque minha língua é o português e meus amigos e familiares achavam que eu devia estudar e treinar em Portugal.
Fui para os Estados Unidos em 1991. A minha experiência não foi fácil, porque viver numa cultura diferente é um desafio. O que víamos na televisão não era a realidade, a expectativa foi diferente. Morei em uma cidade pequena em Óregon, tive uma família que me abrigou em casa, uma host family. Enfrentei problemas, mas acredito que, quando alguém quer triunfar, consegue. Eu consegui.