Postado em 01/10/2001
Mostrando vocação para o esporte, a cidade litorânea de Santos incrementa seus finais de semana com atividades físicas realizadas na praia, transformando a orla numa prazerosa alternativa aos estádios e academiasSantos nasceu do porto. Essa afirmação traduz em grande medida a origem e boa parte de sua trajetória, desde o século 16 até os dias de hoje. Até os finais do século 19, a cidade seguiu sua toada pacata e provinciana totalmente entregue ao movimento das docas. Os santistas de outros tempos concentravam suas casas nas áreas próximas à baía, que devido ao recorte litorâneo serviu de ancoradouro aos navios. A face da cidade voltada para o oceano Atlântico permaneceu desabitada até os estertores dos anos de 1880. Até então, a especulação imobiliária reservava as melhores construções e a infra-estrutura mais bem estabelecida para os terrenos próximos da atividade econômica principal.
Foram os ventos insuflados da Europa, portando ideais de uma modernidade ainda desconhecida por aqui, que despertaram o interesse dos santistas pelo seu litoral. Alguns conceitos novidadeiros passaram a ser incorporados pela elite local: o lazer e o bem-viver estavam entre eles. Desse modo, a orla arenosa que percorre as bordas da cidade por vários quilômetros ganhou, no alvorecer do século retrasado, sua vocação inerente, vindo a ostentar um status inédito: a partir daquele momento histórico, a praia veio a ser o quintal do santista, um espaço democrático em que as pessoas podem usufruir seu tempo, livre e graciosamente.
Esta breve introdução serve para apresentar esse predicado próprio à praia, mas estranho aos nossos ancestrais. Atualmente, uma cidade que conta com litoral aproveitável é privilegiada, pois incorpora um atributo positivo aos índices de qualidade de vida. Com a cidade de Santos não é diferente. Para os santistas, ela presta um papel fundamental no desenvolvimento do lazer. São muitos os exemplos que ilustram esse dote. Um olhar despretensioso pela extensão da orla santista em um fim de semana revela um sem-número de interferências no mar, na areia e no calçadão. É gente correndo, andando, nadando, surfando, conversando, meditando, jogando, tomando sol... Enfim, a praia é um lugar de congregação e sociabilidade por excelência.
Futebol de praia
O futebol está associado à praia desde que chegou ao Brasil (segundo as crônicas oficiais) pelas mãos (ou pelos pés) de Charles Miller. Porém, existem alguns relatos que descrevem um jogo de bola de marinheiros nas praias da Corte antes da introdução do jogo no país. Mas, de qualquer modo, a areia em geral, e em particular a de Santos (devido a sua consistência firme e a extensão da orla santista), oferece aos futebolistas a superfície ideal para uma pelada. Muitos cronistas e pesquisadores já observaram esse casamento peculiar da praia com o futebol. Entre eles, Celio Nori, técnico do Sesc Santos, que desenvolveu uma pesquisa sobre os clubes de praia, agremiações informais e tradicionais da cidade de Santos. Essas associações reúnem seus sócios para um futebol nas tardes de sábado. Não seria uma novidade incomum, caso nesse encontro inocente o pesquisador não tivesse vislumbrado as sementes do que ele denomina de "esporte cidadão" em contraposição à força motriz competidora, que rege grande parte dos eventos esportivos.
Ele explica: "Atualmente, o esporte foi alçado à condição de bem de consumo. Só há espaço para os mais fortes e aptos, numa reprodução da teoria darwiniana. Os ideais de ludicidade e associabilidade se perderam no tempo e o que move a roda é a competição. O jogo praticado pelos clubes de praia escapa do binômio competição-consumo e é revestido de características muito particulares, que exaltam aqueles valores deturpados pela disputa nua e crua".
Em seu trabalho, que serviu como base de uma dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Educação Física da Unicamp, o pesquisador entrou em contato com 33 dessas associações, a maioria com mais de vinte anos de vida, algumas com trinta, e cita a seguir as peculiaridades dessas agremiações. "O principal fator diferencial é que não há disputas entre os clubes. Os associados jogam entre si e a cada semana as combinações dos jogadores das duas equipes mudam." Apesar disso, os jogos obedecem a regras oficiais do futebol: os campos são demarcados de acordo com as medidas oficiais, as traves, idem; os atletas jogam uniformizados e existe até arbitragem.
Assim, "no futebol de praia de Santos não há um campeão, até porque não há campeonatos, praticamente não há torcedores, porque todos os que se fazem presentes, ou pelo menos a imensa maioria, estão ali para jogar. Ainda que houvesse torcedores, torcer para quem? As duas equipes que estão jogando são do mesmo clube e as equipes de hoje serão totalmente diferentes daquelas que serão formadas na semana seguinte. A praia torna-se, portanto, um grande palco esportivo no qual os clubes de praia criam e recriam os seus próprios cenários, que são ocupados por seus atores-protagonistas. A transformação da praia em várias praças esportivas é fruto de um trabalho criativo e engenhoso que confere a esses clubes e respectivos associados as condições necessárias para a prática do futebol, construindo e viabilizando coletivamente uma atividade de lazer que se renova a cada semana", escreveu Nori.
A essa característica do futebol de praia de Santos, outras duas podem ser agregadas. Uma é a que diz respeito à informalidade dos clubes, cujo patrimônio se restringe ao uniforme, à bola e, às vezes, a uma "barraca" a ser montada na praia para a congregação dos filiados. A outra é a autonomia que registram em relação às "instituições esportivas dirigentes, ao poder público e a outras instâncias".
Todos esses atributos particulares diferenciam o jogo dos clubes de praia daquele realizado, por exemplo, na várzea. Enquanto no primeiro a disputa prescinde de competidores externos e os rejeita, a segunda modalidade se extinguiria sem seu caráter competitivo. Aliás, os clubes de praia que se firmaram na década de 1970 se estruturaram como uma resposta quase natural ao acirramento dos embates travados nas areias santistas quando da vigência da Liga dos Esportes de Praia e seu aguerridíssimo campeonato de futebol. A insatisfação com as freqüentes brigas e confusões, culminando com um tiro disparado durante o campeonato de 1975, alterou paulatinamente o apanágio do jogo, que perdeu seu veio competitivo.
Cabeças-de-bagre ou supercraques
Durante o trabalho de pesquisa, Celso Nori deparou com alguns fatos curiosos que ilustram a trajetória dos clubes de praia. Um deles diz respeito ao craque Clodoaldo, meio-de-campo da época de ouro do Santos Futebol Clube, e dá a medida de outra característica democrática que cinge tais agremiações. Ao pendurar as chuteiras, a fim de manter em dia a forma física, Corró, como é conhecido o ex-jogador nos bastidores da bola, filiou-se ao Chopebol. Nem mesmo um currículo que estrelava o tricampeonato mundial no México o credenciou para driblar as rígidas regras do clube que determinam a "incômoda" situação do novato: durante noventa dias, ele teve de se sujeitar ao escrutínio dos membros antigos. Nesse período de experiência, o calouro só joga no segundo tempo. Essa determinação mostra bem o caráter aberto dos clubes de praia que, prescindindo do critério técnico, oferecem oportunidades iguais a todos os associados - cabeças-de-bagre ou supercraques.
Um outro fato curioso remonta às origens dos clubes de praia. Seu Tatá, apelido de Waldemar Wagner Filho, de 76 anos, velho membro do Pioneiros Clube Recreativo, fundado em 1938, em São Vicente, rememora como os antigos jogadores anotavam a duração de uma partida: "Como ninguém trazia relógio de pulso, cronometrava-se [o jogo] pelo percurso do bonde 13, que de ida e volta à Pedra da Feiticeira levava algo em torno de 45 minutos. Era essa a forma de marcar o tempo dos jogos... Repetia-se o mesmo no segundo tempo, e o motorneiro, já sabendo de tudo, tocava a sineta do bonde ao passar diante dos times".
Como conclusão, Nori propõe que os atributos que se escondem atrás da sadia "disputa" dos clubes de praia se sobressaiam ante aqueles demonstrados pelo esporte de performance e sejam seguidos por vários segmentos da sociedade: "Assim, numa perspectiva marcada pela diversidade, poderá surgir o 'esporte pós-olímpico', que venha ao mesmo tempo preservar o alcance, a magia e o encantamento que o esporte enseja na atualidade, resgatando, porém, seus valores e significados originais fundantes [...] No esporte pós-olímpico, o protagonista deverá ser sempre o 'cidadão esportivo' exercendo sua cidadania esportiva, seja ele praticante, espectador ou consumidor. Nessas três condições que não devem ser excludentes e sim complementares, irá predominar uma postura consciente e crítica. Dessa forma, [...] o indivíduo estará participando de uma dimensão comunitária, através do esporte, da edificação de uma vida de melhor qualidade para todos".
Corpo cidadão - Evento Sesc Santos promove a sociabilização pelo esporte |