Postado em 09/11/2018
Por Wagner Linares*
Na noite desta quinta-feira, a companhia de teatro portuguesa João Garcia Miguel subiu ao palco do Sesc Santo Amaro para dar início à terceira edição do Festival Yesu Luso, apresentando o espetáculo A Casa de Bernarda Alba, de Federico Garcia Lorca.
A narrativa se desenlaça sob o dilema de uma matriarca enlutada e suas quatro filhas em busca de felicidade, ou algum senso de felicidade que se traduz no amor, no matrimônio, no masculino e, de maneira velada, nos próprios desejos de liberdade.
Foto: Mario Rainha
Para além deste motivo estruturado em uma concepção social arcaica, a montagem dirigida por João Garcia Miguel confronta o público do ponto de vista formal quando a personagem-título, encarnada pelo ator Sean O`Callagham, entrega todas as suas falas em inglês enquanto os demais integrantes do elenco, as duas atrizes brasileiras Annette Naiman e Paula Liberati e o português Duarte Melo, dividem nossa língua entre seus sotaques.
Bernarda Alba, representada num homenzarrão caucasiano, rasga seu vocabulário anglo-saxão em urros guturais e exclamações enfurecidas no intento de fazer valer a moralidade do luto de oito anos pelo falecido marido em oposição às vontades de suas filhas. Essa presença opressora está destacada no contraste físico entre Sean e o resto do elenco, bem como na brutalidade que ele impõe à condução das cenas, arrastando, empurrando, chutando e se fazendo soberana de sua casa. Esta soberania se completa na figura da governanta (Duarte Melo), que apresenta o registro corporal mais destoante da montagem, encarnando trejeitos caninos numa postura servil para assumir o arquétipo do lacaio delator.
Foto: Mario Rainha
Através das três maneiras de falar (português, português brasileiro e inglês), constrói-se também uma espécie de síntese do jogo de poder armado no palco. O sotaque português da governanta devora sílabas, chia e sibila mensagens sorrateiras. A vocalidade aberta do sotaque brasileiro conspira a favor dos diálogos emocionados e carregados de sexualidade das irmãs, enquanto o inglês imperativo da matriarca estala consoantes aos berros sempre que a manutenção da ordem se faz necessária.
Em meio a tamanho cerceamento de libido, a encenação deixa poucos respiros de alívio no ar. Num dos poucos momentos que se veem livres de Bernarda Alba, as personagens não hesitam em invocar um momento Girl Just Wanna Have Fun, dançando uma estranhíssima Macarena em nome da liberdade momentânea. Essa leveza dura pouco. Uma rocha roliça é corriqueiramente tomada como elemento cênico expressivo, passada entre mãos, arremessada e idolatrada, como um fardo descabido que aquelas personagens são obrigadas a sustentar.
Foto: Mario Rainha
A Casa de Bernarda Alba se concentra, sobretudo, em tratar deste sufoco que é obrigar que alguém seja aquilo que não deseja para si e na relativa violência que esta imposição demanda, inevitavelmente. Do alto de nosso mundo globalizado e secular, A Casa de Bernarda Alba se faz um olhar nada nostálgico para um passado que eventualmente tropeça em nosso presente, um convite à manutenção de nossa liberdade de desejar.
O espetáculo fica em cartaz até o dia 11/11 no Sesc Santo Amaro, com ingressos à venda no Portal Sesc e nas bilheterias das unidades.
*Wagner Linares é Editor Web no Sesc Santo Amaro