Postado em 30/10/2018
"Ser imortal é insignificante; com exceção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível é saber-se imortal." (Jorge Luis Borges em "O Imortal")
O espetáculo “O Imortal” faz sua estreia em São Paulo no Sesc Avenida Paulista e fica em cartaz de quinta a domingo, até 18 de novembro. O monólogo, baseado no conto homônimo do escritor argentino Jorge Luis Borges é estrelado pela atriz Gisele Fróes, e desvenda as diversas simbologias acerca da (i)mortalidade na obra do ensaísta argentino. O espetáculo conta com a direção dos Irmãos Guimarães e dramaturgia de Adriano Guimarães e Patrick Pessoa.
A EOnline conversou com o diretor Adriano Guimarães e com a atriz Gisele Fróes sobre o processo de adaptação da obra literária para a obra teatral e como ela se relaciona com os dias de hoje.
EOnline: Sobre o que se trata a peça "O Imortal"?
Adriano Guimarães: A peça é a partir de um conto do Borges chamado “O Imortal”, que tá no livro “O Aleph”. Trata-se da história de uma princesa que recebe de um antiquário seis volumes da Ilíada do Homero, traduzida pro Inglês pelo Alexander Pope. Ela vai pra casa e descobre que dentro do sexto volume da Ilíada tem um manuscrito, e o conto vai mostrar esse manuscrito integralmente. Esse manuscrito começa com a história de um Guerreiro romano chamado Marco Flamínio Rufo, que decide ir em busca da imortalidade. Ele fica sabendo que existiria um rio, e, se você bebesse das águas desse rio, você conseguiria ser imortal. Na margem oposta desse rio existe uma cidade incrível, que seria a cidade desses imortais. O manuscrito é então a saga, a busca incessante dele pra encontrar a imortalidade.
Também usamos como base o livro "Borges Oral e Sete Noites" que são algumas palestras. Dentro desse conjunto de falas, tem uma chamada “A Imortalidade”, em que ele versa sobre o mesmo assunto, mas 30 anos depois que ele escreveu "O Imortal". Então, o que norteou (a peça) foram essas duas obras do Borges.
EOnline: Na sua obra, você tem uma ligação forte com a literatura. Como você vê essa transposição para o teatro? Da onde surgiu esse seu interesse?
A. G.: O meu primeiro trabalho já era uma adaptação de um texto literário da Marguerite Yourcenar, chamado “Provisoriamente Paixões”, que eram dois contos e a gente fez uma peça. No final dos anos 1990, eu trabalhei com a obra literária e peças do Beckett.
EOnline: Quais são os desafios ao fazer uma adaptação literária?
A. G.: Quando você tá lendo alguma coisa, sua relação com o livro é muito diferente: você volta porque você não entendeu, você relê a frase, você abre e fecha o livro quando você quer.
Ele está escrito pra essa linguagem, pra esse tipo de relação com a linguagem escrita, que é muito diferente da relação de alguém que vem assistir, que senta numa cadeira e vai ouvir aquilo. O que muda muito nessa equação é a figura do intérprete. Se eu colocasse um monte de livros e as pessoas sentassem, seria uma biblioteca, a relação não muda. Mas, quando tem alguém narrando pra você, muda a relação. Aquele material é mediado pelo intérprete, que tem a primeira relação com o material, não é sua diretamente. Tem o livro, tem o intérprete e tem você. Então, é como o intérprete se relaciona com aquelas palavras, com as falas, com os significados, com tudo que tem ali, e que chega até você de uma maneira completamente diferente. Então, acho que a o intérprete é a figura chave dali, e como é falado, não se volta. É outro tipo de relação: escutar e ler.
EOnline: Quais tipos de provocações surgiram no trabalho com a intérprete, a Gisele Froes, e que provocações você espera ter com o público?
A. G.: Esse projeto, primeiramente, veio da Gisele. Ela leu o conto e gostou muito, mas não sabe dizer até hoje o que a levou ter vontade de montar esse conto. Eu entrei no projeto depois. Ela me convidou pra fazer a direção já sabendo que essa era minha praia.
Se você for ler o conto, não que eu acho que todo mundo precisa ler, mas a gente (eu, ela e Patrik Pessoa) passou dois anos estudando, pesquisando e relacionando com outras obras, estudando Borges de maneira geral. A Gisele entrou cem por cento nessa pesquisa literária, de conceito de tudo. A grande coisa foi esse mergulho profundo no conto, porque o conto é críptico, ele não é um conto de fácil entendimento. Você lê e pensa: "oi? Peraí!". Acho que o grande desafio foi pensar como a gente traria pra cá, e o faria todas as noites.
Não é que ela faça a construção todo dia igual ao guerreiro Rufo, mas é a Gisele que se relaciona com aquele texto, naquela noite, com aqueles espectadores, com aquela circunstância de vida que é única ali. Então, ela tem um dado: uma palavra não muito boa, que é muito gasta, mas é performática.
Isso também tem a ver com a construção cenográfica das caixas, que foi pensado não somente como um cenário, mas como se alguns elementos da encenação fossem colocados juntos para dialogar, não necessariamente um servindo ao outro. É como se as hierarquias estivessem um pouco distribuídas, horizontalizadas. É uma instalação que pode existir sozinha, junto com uma atriz que vai dizer o texto ali, corporificar aquilo, junto com o livro que preexiste sozinho. Eu poderia fazer essa peça sem cenário nenhum, tudo vazio, mas a proposta é: Que tipo de combinação a gente vai ter naquela noite ali, com todos esses elementos combinados? É quase como se fosse uma instalação com uma performance, não deixando de ser uma peça teatral com uma atriz.
EOnline: Como surgiu o interesse de adaptar o conto "O Imortal" para o teatro? Quais os principais desafios?
Gisele Fróes: Há oito anos eu fazia a peça “Você Precisa Saber de Mim”, espetáculo do Jefferson Miranda. A personagem que eu fazia tinha muita dificuldade de se comunicar. Ela sentia coisas, mas não conseguia botar as palavras pra significar os sentimentos dela, era muito torto. E nessa época, como era uma peça a partir de improvisação, eu, Gisele, fiquei sentindo falta de palavras. Eu, como atriz, como pessoa, fiquei com vontade de ter contato com palavras que dessem o significado apropriado e poético para as coisas que se sente.
Eu fui ao Borges intuitivamente. Queria ler alguma coisa que tivessem palavras boas, férteis, então peguei “O Aleph”, e “O Imortal" é o primeiro conto. E quando eu li, já me apaixonei. Eu me senti conduzida por palavras. Eu o considero um conto muito difícil. A primeira leitura foi muito difícil pra mim, de compreender. Mas agora, depois de 8 anos em contato com o conto, eu tenho outra relação com ele. As palavras me davam sensações boas, então ele é o contrário do que estava (me sentindo) no outro trabalho, onde as sensações não achavam palavras. Nessa, as palavras me davam sensações, e me dão até hoje. Cada vez que eu releio “O Imortal”, eu continuo relendo, e cada vez que eu apresento o trabalho, eu sou conduzida pelas palavras. Isso que me instiga e me instigou muito, além de toda a história que conta. Acho que é isso: as palavras conduzem.
EOnline: Como é ler Borges hoje? Na sua opinião, qual tipo de relação é possível fazer entre a peça e os dias de atuais?
G. F: Um ponto que conduz (de novo a palavra) o espetáculo e o conto é a imortalidade. O título diz isso, e acho que ler Borges, como ler qualquer autor clássico - um grande autor, é eterno. Em qualquer momento será fértil e importante. Enfim, acho que o Borges é um desses autores que em qualquer momento que se lê, sempre vai te levar pra alguma reflexão, pra alguma sensibilidade, para um lugar que seja importante e fundamental.
Os clássicos sempre podem fazer relação com os dias atuais e com a época em que foi escrito. O conto tem isso também! Eu acho que fazer essa peça, hoje, continua conduzindo e fertilizando o pensamento pra reflexões, que para mim, cada vez mais - principalmente chegando perto das eleições, são fundamentais. De que modo se construiu a civilização? De que modo as cidades foram construídas? O que importa mais? Quais são os valores? Onde está a grande riqueza? Em cada época, cada dia, eu sou afetada em lugares diferentes. Então isso, pra mim, prova que fazer esse trabalho hoje é, e será sempre, muito fértil. A relação com os dias de hoje está, literalmente, em cada dia e na época atual, em cada dia que eu faço esse trabalho, em cada pessoa que for ver será afetada em lugares diferentes, por momentos diferentes.
Acho que em uma história clássica, o bacana é isso: vai ser eterna, vai ser sempre atual, o que é impressionante!
A. G.: Se tem algo que existe na literatura do Borges é uma não afirmação de verdades. O Borges, até em "O Imortal", vai discutir autoria, a alteridade das coisas e as camadas. Acho que é a contramão do que a gente tá vivendo hoje, de que as coisas são fundamentalistas, que existe uma verdade aqui, que é isso. Ele fala da instabilidade do fundamento original, de uma origem de alguma coisa.
Obras relacionadas por Adriano Guimarães
A obra do Borges de maneira geral, "O Aleph", "Borges Oral e Sete Noites" e indicaria também o disco Preliminaires, 2009 do Iggy Pop. Principalmente as músicas A Machine For Loving e How Insesitive (ouça abaixo).
JORGE LUIS BORGES
Jorge Luis Borges (1899-1986), grande nome da literatura argentina do século XX, foi poeta, ensaísta e contista. Por volta dos 50 anos de idade, sua doença hereditária nos olhos se agravou. Terminou os seus dias cego, como Homero. Leitor voraz e eclético, tornou-se mundialmente conhecido por contos que mesclavam a ficção e o ensaio, a criação de universos, os mais delirantes, e uma filosofia que fazia esses universos parecerem estranhamente familiares. Foi um prodigioso inventor de metáforas que se tornaram clássicas e foram retomadas por diversos artistas: o labirinto, a biblioteca, a enciclopédia chinesa, o espelho.
GISELE FRÓES
Conhecida há mais de duas décadas por suas atuações no teatro, na televisão e no cinema. Ganhadora do Prêmio Shell de melhor atriz de 2004 pelo espetáculo "Deve haver algum sentido em mim que basta", Gisele já realizou inúmeros espetáculos com diretores como Aderbal Freire-Filho, Malu Galli, Jefferson Miranda, Moacir Chaves, Moacyr Góes e Domingos Oliveira, destacando-se: Oréstia (2014), Você Precisa Saber de Mim (2011/2012), Rock'N'Roll (2009), O Mundo dos Esquecidos (2007), Divã (2005), E Agora Nada É mais uma Coisa Só (2005), A Prova (2002), Carícias (2001), Cabaré 3: Para Quem Gosta de Mim (1999), A Alma Boa de Set-Suan (1998), O Congresso dos Intelectuais (1997), Don Juan (1997), No Verão de 1996... (1996), Senhora dos Afogados (1994), Turandot ou O Congresso dos Intelectuais (1993), Tiradentes, Inconfidência no Rio (1992), O Tiro Que Mudou a História (1991) e Lampião (1991).
No cinema, atuou em filmes como Trash: A Esperança Vem do Lixo (2014), Boa Sorte (2014); Riscado (2010) e VIPs (2010), ganhando o Prêmio de Atriz Coadjuvante no Festival Internacional de Cinema do Rio de 2010. Atuou em diversas novelas, destacando-se A Força do Querer (2017), Sete Vidas (2015), Geração Brasil (2014), A Vida da Gente (2011), Escrito nas Estrelas (2010), A Favorita (2008), Sinhá Moça (2006) e Belíssima (2005), além de ter atuado em séries/minisséries e especiais como Amor em 4 Atos (2011), Força Tarefa (2009), A Grande Família (2007), Carga Pesada (2007) e A Diarista (2004). Fez participação especial na série Mandrake (2005), série produzida pela HBO Brasil, finalista por duas vezes ao International Emmy Awards.
IRMÃOS GUIMARÃES
O Coletivo Irmãos Guimarães foi criado em 1989, pelos irmãos Adriano e Fernando. Ao longo de sua trajetória, construíram obras que transitam entre teatro, performance e artes visuais. São conhecidos internacionalmente pela pesquisa artística desenvolvida, desde 1998, sobre a obra do escritor irlandês Samuel Beckett. Realizaram diversos projetos transdisciplinares contando com a colaboração de nomes como Stanley Gontarski, Marília Panitz, Fábio de Souza Andrade, Luiz Fernando Ramos, Vera Holtz, Gerardo Mosquera, Luís Melo, Bárbara Heliodora, Denise Stutz, Gerd Bornheim, Helena Katz, José Miguel Wisnik, Ana Miguel – para citar alguns. Realizaram diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior, tendo sua trajetória marcada por mostras como a Bienal de São Paulo e o Panorama da Arte Brasileira. Foram indicados diversas vezes ao Prêmio Shell, uma das mais importantes premiações do teatro brasileiro, sendo agraciados na categoria de Melhor Direção, junto a Hugo Rodas, com a montagem de Dorotéia. Adriano tem se dedicado, mais recentemente, as montagens profissionais da dupla, enquanto Fernando tem atuado ativamente na formação de atores, na Faculdade Dulcina de Moraes, Brasília/DF.
Os Irmãos Guimarães tem em sua trajetória mais de 50 peças teatrais, entre as mais recentes: Hamlet - Processo de Revelação (Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro/RJ; Teatro Sesc Esquina, Curitiba/PR; Teatro Renascença, Porto Alegre/RS; Teatro da Caixa, Brasília/DF; Teatro Sesc Pelourinho, Salvador/BA, 2015-2017); Ruído (Projeto Microteatro, Castelinho do Flamengo, Rio de Janeiro/RJ, 2016); Nada – Uma Peça para Manoel de Barros (Teatro Oi Futuro Flamengo, Rio de Janeiro/RJ, 2012; Centro Cultural Banco do Brasil, Brasília/DF, 2013; Sesc Belenzinho, São Paulo/SP, 2013).