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Ficção
Conto de Inverno

Postado em 01/08/1997

Outro dia - não sei exatamente quando, pois o tempo tem passado sobre mim como um trem - estava deitado num banco de praça. Tinha um pouco de vômito na camisa. Abri um dos olhos e vi que haviam me roubado as havaianas. Mas continuava com os cigarros. Estava quase fechando os olhos de novo, quando um pombo veio na minha direção. Tinha aquele jeito engraçado de caminhar no meio das pedrinhas da calçada. Parecia um Carlinhos mas - pensei eu - tinha asas, o que é sempre muito bom.

Mas o outro eu - um que inventei desde que fiquei maluco - disse para mim, um terceiro eu: "Mas ele é um pombo, seu merda! Não é um homem." Aquelas palavras, ditas assim de surpresa, por um sujeito que inventei, chatearam o cara que sou sem querer. Me fizeram pensar, e pensar é tudo que não quero. Porque se começo com isso, vou acabar descobrindo que estou todo mijado, o que piora muito à luz do meio-dia em qualquer cidade. E eu nem sei em que cidade estou. Mas é uma praça. A porra do pombo ficou bicando no meu pé. Logo onde eu tenho uma ferida. Ferida boba. Caí quando olhava para um ramo de margaridas.

Fechei os olhos e pensei: "Pombo. Tem pena de mim e vai embora." Não é que foi? Voou alto, alto, para longe da sujeira.

Esses bichos, entretanto, comem tudo que é porcaria.

O fígado deles deve estar pior que o meu. Comecei a rir. Meio alto demais, acho. Pois então alguém pode ter um fígado mais estragado do que o meu?

Voltei a fechar os olhos, esperando morrer. Mas não morrer de um modo que pudesse chamar a atenção de alguém.

Morrer assim fudidinho, quietinho, como um morto desses que só chateiam os lixeiros. E depois ir para o céu, ver o meu pai, os meus irmãos e não precisar chorar mais, desse jeito que é como uma dor; uma dor que deve ter nascido comigo. Talvez, não, pois deve ter sido feliz alguma vez. De qualquer modo, essa dor te pega na ponta dos dedos e vai subindo até o coração; te tira o ar mas não te mata. Te deixa morto, mas não te mata.

Mijado, cagado - desconfio - vomitado e acho que muito triste fechei os olhos, torcendo para não sonhar. Foi quando ouvi uma voz de homem jovem, dizendo:

- Porra, cada vez que vejo um cara assim, me dá um medo de acabar desse jeito!Não devia ser uma pessoa ruim. Só estava com medo.

Uma voz bonita, bonita mesmo, de mulher falou para ele: - Sempre que vejo um velho desses, fico pensando que um dia ele foi criança. Teve mãe, pai e irmãos que queriam bem a ele. Onde estarão os seus tios, os primos, os filhos, a primeira namorada? Por que é que ele está todo sujo, quase morto neste banco de praça?

"E tão, tão sozinho", pensei em dizer, mas ela podia se zangar. Quando o casal se afastou, botei a mão no bolso detrás das bermudas e descobri que tinha quebrado a garrafa de cachaça. Retirei ela de novo, bem devagarinho. Olhei pra ela e vi que havia sangue. O ser humano é feito disso - pensei. Mas já tem tempo que parei de me disfarçar de ser humano.

Fechei os olhos outra vez e tentei dormir, apesar do sol batendo na minha cara, meus outros eus já tinham dormido, mas eu continuava acordado. Foi quando a polícia chegou. Deve ter sido porque há pouco ri muito alto. Gente humilde, mas muito ignorante, muito apavorada, por isso violenta. Um deles me levantou e o outro me deu um pontapé na bunda.

Sem que eu quisesse, as lágrimas começaram a rolar pela minha cara barbuda que, podem acreditar, já foi uma cara bonita. Tentei me lembrar do meu anjo da guarda, uma mulher linda que me queria bem, muito mesmo, de verdade; que dormia comigo, até vivia comigo na mesma casa, quando eu era jornalista e escrevia livros. Eu gostava tanto dela que nem parecia coisa de ser humano. Ela era minha melhor amiga. Tinha prometido envelhecer comigo. Eu cuidaria dela e ela cuidaria de mim. Depois, acho que os pensamentos pararam ou foram obrigados a parar, pois bati com o rosto na calçada. Por um instante fiquei quase contente, pois meu anjo da guarda, aquele que me prometeu tanta felicidade, certamente não ia deixar que me machucassem mais ainda.

Depois veio uma dor tão grande, uma dessas que ninguém merece. Acho que nem eu. Por que é que essa dor não pára nunca? Por que ferem tanto o meu coração? Só então me lembrei de que meu anjo da guarda, há muito tempo, tinha me dado um tiro nas costas.

Fausto Wolff é escritor

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