Postado em 25/08/2018
Por Sergio Molina
Nos últimos 40 anos, importantes festivais de jazz mudo afora abriram espaço para absorver em sua programação gêneros musicais que, de alguma forma, tangenciavam seu universo mainstream. E isso aconteceu justamente para acolher um movimento que partia de alguns dos principais músicos. O caso de Miles Davis (1926-1991) é simbólico: com seu Bitches Brew, na virada dos anos 1960 para os 70, inaugurou o estilo fusion, aventurando-se em levadas pop/rock e incorporando instrumentos eletrônicos (teclados, guitarras com efeitos, contrabaixo elétrico etc.).
De lá pra cá, essas “fusões” vêm sendo feitas de diversas formas e tendo como referência diferentes pontos de partida. Como aconteceu com Miles, Wayne Shorter, Zawinul, Chick Corea, John Scofield, Pat Metheny e tantos outros, muitas vezes são os músicos de formação jazzística que caminham em direção ao pop rock. Em outros casos, acontece de músicos com larga experiência no pop rock se lançarem no ambiente jazzístico. E até pouco tempo, a diferença entre essas duas trajetórias ainda ficava evidente no vocabulário escolhido para os momentos mais soltos de improvisação.
Generalizando, podemos dizer que a música eletrônica de hoje tem características diametralmente opostas àquelas comuns ao jazz mais convencional: beat insistentemente marcado, ausência de improvisação melódico-harmônica, grande quantidade de sons programados e pouca participação de instrumentistas ao vivo.
E é justamente esse o território de performance escolhido pelos integrantes do trio Now vs. Now. O nova-iorquino do Brooklin Jason Lindner, líder de big band nos anos 1990, pouco a pouco foi migrando do piano acústico para os teclados, e dos teclados para os processadores digitais de sonoridades. A participação ativa na produção de Blackstar, último álbum de David Bowie, merece destaque. Panagiots Andreou é grego de Atenas e se expressa através de seu baixo elétrico (com processamento de efeitos) de forma extremamente particular. Além dos timbres cuidadosamente selecionados para cada passagem, possui um incomum senso de subdivisão rítmica possivelmente adquirido em seus estudos de música grega tradicional, além de uma impactante presença de palco. Tal domínio permite a Panagiots e Justin Tyson (baterista) criarem situações de polirritmia (diferentes padrões rítmicos paralelos) que apenas a música eletrônica programada (controlada digitalmente por softwares) era capaz de realizar.
E a performance “orgânica” desses diferentes ciclos em sincronia, com expressão, nuances de execução e sintonia com o público produz um resultado até então impensável. Tyson é de Michigan, conhecido por fazer parte do grupo de Esperanza Spalding, e incorpora com naturalidade, em sua performance acústica, elementos de drum'n'bass (com fraseado altamente subdividido), e, eventualmente, efeitos de drunk drumming (quando algumas subdivisões mínimas são propositadamente atacadas fora dos pulsos regulares, dando um efeito de deslocamento, uma espécie de “erro” intencional).
Na noite de sexta, 24 de agosto, a Comedoria do Sesc Pompeia estava lotada para ouvir o trio. As mesas menores, como num clube norte-americano, criaram uma situação aconchegante para o público que acompanhou atento o espetáculo, sem palavras, do grupo. O convite dos músicos para que a plateia ficasse de pé e se aproximasse no bis também fez sentido, afinal de contas, dança e jazz sempre foram indissociáveis nas primeiras décadas do século passado.
A música de Now vs. Now é “música de montagem”, com pequenos módulos rítmico-harmônico-texturais justapostos, recortados, sobrepostos. Frequências são filtradas (cortes de graves) e sonoridades inusitadas são criadas por timbres amalgamados.
Now vs. Now é música para hoje, música para agora!
Sergio Molina é compositor, coordenador-geral de música na Faculdade Santa Marcelina e autor de Música de Montagem (É Realizações 2017).
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