Postado em 19/08/2018
Por Isabel Nogueira
Assim que as luzes se apagam no teatro, sete pessoas entram no palco falando, conversando, interagindo com a plateia e saem novamente até que reste apenas o violão. Lentamente, retornam baixo e bateria, depois sopros e piano.
Desde a primeira música, o clima é de uma festa em família: a performance no palco é animada pela troca rápida de instrumentos entre toda a banda e por uma mistura de ritmos brasileiros na qual não é possível definir quando termina o baião e começa o frevo quebrado e inventivo.
Buscar descrever ou mapear o uso de instrumentos seria loucura: o objetivo é a polifonia que costura tudo, o tramado onde a mistura provoca a definição a partir de um diálogo em constante mutação.
No começo de cada música, é absolutamente impossível prever qual será seu desenvolvimento ou término: as escolhas de performance e arranjo são a cada momento inusitadas, mostrando uma inventividade incansável.
O show inclui uma alternância surpreendente de timbres: por vezes um quinteto de sopros com triângulo, um trio de flautas que rapidamente muda para um trio de sax, um diálogo em que permanecem no palco apenas baixo e bateria, logo um choro (em conceito amplo) em dueto de piano e flauta entre pai e filha.
A interação entre os músicos é extraordinária, com constantes trocas de instrumentos entre cada tema e no decorrer deles, mostrando uma prática de multi-instrumentistas que denota uma enorme capacidade de invenção e improvisação.
O show inteiro é uma mostra intensa, alegre e festiva de temas e possibilidades de arranjos: os temas a cada momento são transformados durante a performance de uma forma leve e fluida em que os motivos musicais mudam o tempo todo, atravessados por arranjos complexos e cheios de convenções.
Os elementos rítmicos mudam a cada dois ou três compassos, fazendo com que um tema que começava tendo elementos de baião passe rapidamente para alguma coisa mais próxima do maracatu e logo para algo que é muito próximo do frevo, terminando por vezes com um improviso livre que envolve todo o grupo.
Neste contexto, a bateria transcende o papel de marcação rítmica e Ajurinã Zwarg assume uma função polifônica que envolve uma enorme gama de temas, variações e por vezes diálogos melódico-percussivos entre mãos e baquetas.
Impossível não perceber a linguagem performativa de Hermeto Paschoal durante o show, seja na performance de palco como na concepção geral dos temas, baseados nesta mistura rítmica e em uma polifonia construída através de inúmeras variações tecidas por cada um dos instrumentos da banda.
A presença de duas mulheres no palco, Mariana Zwarg e Carol Davila remete a um dos pontos fundamentais do festival: a ênfase na prática musical feminina.
As duas se posicionam na frente do palco, na linha do trio de metais, e intercalam, por diversas vezes no mesmo tema, flauta, saxofone, flautim e voz; ampliando os papeis que as mulheres tradicionalmente ocupam nos grupos de jazz.
Todos tem uma interação musical focada na estrela da banda, Itiberê Zwarg, que alterna a interpretação do baixo com o piano, a tuba, o nord stage e extraordinários improvisos vocais.
O show comemora os 50 anos de carreira de Itiberê com o lançamento do CD pelo Selo Sesc, e ele diz: “comecei a tocar violão aos 13 anos, fui experimentando, gostava de descobrir os acordes, fui para os graves e daí para o contrabaixo foi um pulo. No primeiro dia em que toquei contrabaixo acústico, meu pai chegou em casa e disse que o baixista do baile não ia naquele dia e falou: vai você mesmo. Fiz bolha e mais bolha até fazer calo, e calo faz a gente tirar um som melhor.”
O bis trouxe um tema cheio de quebras de seções e Itiberê encerra o show dizendo: “estamos aqui fazendo o nosso melhor. Esperamos que cada um faça o seu melhor pra gente melhorar este mundo. É a música que segura o mundo enquanto a gente viver, diz Hermeto.”
A voz do mestre está ali, para além da música.
O show inteiro é tremendamente hipnotizador ao mesmo tempo que complexo e instigante: a elaborada malha polifônica combinada com as trocas de instrumento e a constante variação de motivos e ritmos faz com que seja impossível desgrudar os olhos e ouvidos do palco.
Isabel Nogueira é compositora performer e musicóloga, Doutora em musicologia pela Universidade Autônoma de Madri, Espanha (2001) e Bacharel em Piano pela Universidade Federal de Pelotas, RS, Brasil (1993). Professora Titular do Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora e orientadora dos cursos de graduação, Mestrado e Doutorado em Música (UFRGS), e Mestrado e Doutorado em Memoria Social e Patrimônio Cultural (Universidade Federal de Pelotas). Suas pesquisas e publicações se desenvolvem sobre os temas de música e gênero, performance, improvisação e criação sonora
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