Postado em 18/08/2018
Por Isabel Nogueira
A disposição do lugar era totalmente diferente da noite anterior: mesas redondas dispostas diante do palco induziam o público a perceber o clima, entre intimista e sutilmente rítmico, que o pianista traria.
Salomão Soares entrou no palco acompanhado pelos músicos Paulo Almeida, na bateria, e Thiago Alves, no contrabaixo acústico.
Logo depois da primeira música, o pianista apresenta o trio, dizendo que os três se conheceram em São Paulo, e que compôs estas músicas especialmente para esta formação, para estas pessoas.
O formato do show aborda uma das mais tradicionais e constantes formações do jazz, o trio formado por piano, baixo e bateria. Uma de suas origens foi a necessidade de oferecer uma alternativa instrumental para as grandes e caras big bands, mas transformou-se em um combo bem equilibrado onde a unidade estilística é o elemento fundamental do grupo.
Nesta formação, geralmente o pianista empresta seu nome ao trio, o que poderia apontar para um trabalho solo do piano com o apoio de baixo e bateria, mas é justamente o amálgama entre os três instrumentos que confere a identidade do grupo.
Logo na segunda música, se percebe um contraste interessante entre seções com bastante preenchimento melódico harmônico realizado pelo piano e outros momentos onde a bateria ou o baixo aparecem com mais destaque.
O piano de Salomão traz ecos de um tumbao cubano e, em outros momentos, remete à Bianca Gismonti, em excelente diálogo com baixo e bateria.
Durante alguns trechos, o desenvolvimento motívico não se apresenta de forma tão marcada, e o que se observa é uma combinação entre a exploração das linhas jazzísticas e um uso elegante da polirritmia ao piano.
A presença do contrabaixo de Thiago Alves é intensa ao longo de todo o show, demonstrando uma construção melódica sólida na qual a utilização de diferentes formas de acentuação vai traçando pontes entre os temas.
Ao mesmo tempo, as escolhas timbrísticas da bateria de Paulo Almeida, priorizando o uso da caixa e dos pratos, nesta primeira seção do show produzem um diálogo potente com o uso do piano no registro agudo.
A criação de climas que vão se modificando de forma sutil e delicada faz com que o espetáculo convide à escuta e à degustação dos diversos ambientes criados pela música.
O piano de Salomão combina inventividade melódica com polirritmia, mas em alguns momentos faz referência a sonoridades que remetem a Claude Debussy, especialmente no solo de piano do tema dedicado à James Michel Basquiat.
Paulo Almeida traz uma bateria baseada em potência e demonstra uma excelente interação do pensamento rítmico com o baixo e o piano, lidando com alternâncias entre variação e preenchimento.
No solo de bateria, o diálogo acontece com pontuações específicas do piano, enquanto no solo de baixo as respostas vêm de uma paleta de sonoridades obtidas através do uso das bordas da bateria.
O show traz momentos mais melódicos e que vão lentamente ficando mais complexos, como o tema “Florescendo”, e estes se alternam com outros mais intensos e rítmicos, como na releitura da versão de John Coltrane para My Favourite Things (Richard Rodgers).
O trio em alguns momentos se afasta dos arranjos típicos desta formação, tanto nos instrumentos individualmente, no desenvolvimento harmônico e melódico, como na interação entre os músicos.
Exemplo disto é o tema que começa com solo de baixo timbrado, priorizando a capacidade melódica do instrumento, até propor a levada na qual irão se integrar bateria e piano. A bateria tocada nas bordas propõe uma sutileza que o piano segue nos registros médios, passando para uma ideia de agudos na bateria.
O público, que se manteve sentado durante o show, aplaudiu de pé ao final, pedindo um bis que veio cheio de virtuosidade técnica e marcado por um tema repleto de variações de acentuação rítmica.
Durante todo o show, o que vemos é um pianista com uma excelente técnica pianística, que explora a linha idiomática do jazz passeando por diversas referências, algumas vezes evocando um pianismo gismontiano, por outras trazendo elementos da música cubana. Percebe-se ainda uma veia Keith Jarret, Uri Caine e Brad Mehldau, na qual o vocabulário técnico do repertório clássico domina a apresentação da linguagem jazzística.
Isabel Nogueira é compositora performer e musicóloga, Doutora em musicologia pela Universidade Autônoma de Madri, Espanha (2001) e Bacharel em Piano pela Universidade Federal de Pelotas, RS, Brasil (1993). Professora Titular do Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora e orientadora dos cursos de graduação, Mestrado e Doutorado em Música (UFRGS), e Mestrado e Doutorado em Memoria Social e Patrimônio Cultural (Universidade Federal de Pelotas). Suas pesquisas e publicações se desenvolvem sobre os temas de música e gênero, performance, improvisação e criação sonora
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