Postado em 29/05/2018
Seja como o jovem intelectual Piotr de Pequenos Burgueses, encenada em 1963, ou como o arcebispo Péréfixe de Molière, atualmente em cartaz, o ator Renato Borghi faz do palco um espaço de reflexão cultural, política e social. Aos 81 anos, sua história confunde-se com a do teatro brasileiro, somando seis décadas dedicadas à arte da interpretação. Ao esquivar-se do tempo, Borghi, que, ao lado de José Celso Martinez Corrêa, foi um dos fundadores do Teatro Oficina, segue criando e propondo novas perspectivas para o teatro contemporâneo. Criador de peças como O Lobo de Ray-Ban, que lhe rendeu os prêmios Molière, Mambembe, APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) e Apetesp (Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo) de melhor autor, ele segue uma intensa agenda de criação, temporadas e pesquisas, como a última, realizada numa viagem pela América Latina durante a qual encontrou novos nomes da dramaturgia. Nesta entrevista, Borghi fala sobre a dedicação ao teatro, desafios da classe artística e sobre a importância de ter voltado a atuar no papel de Abelardo I, na remontagem de O Rei da Vela, que esteve em cartaz no Sesc Pinheiros em 2017, meio século depois de consagrar-se nos palcos com a atemporal obra de Oswald de Andrade.
Foto: Leila Fugii
A dramaturgia sempre foi uma preocupação sua, correto?
Sim. Em 2001, fiz um festival retrospectivo do teatro paulista em que 15 autores escreveram textos de 20 minutos, encenados no Sesi. Depois fiz outro festival retrospectivo com peças brasileiras e sul-americanas. Esse lado da escrita sempre me preocupa muito. Tanto que em 2010, fiz uma viagem pela América Latina, ideia do Élcio Nogueira Seixas [ator e parceiro de vários projetos], que achei ótima. A gente viajou por todos os países da região, sem exceção. Nesse caminho, buscamos contato com os dramaturgos locais, porque a gente conhece muito mais a dramaturgia inglesa e norte-americana do que a nossa. E existe por parte dos dramaturgos de vários países da América Latina este ressentimento: é como se estivéssemos de costas para eles. Dessa viagem, trouxe mais ou menos 1200 peças. Distribuímos este total para ser lido por uma equipe, e entre as selecionadas está Molière [texto da mexicana Sabina Berman em cartaz no Centro Cultural Fiesp], por exemplo.
Nessa viagem, você observou novas temáticas abordadas pelos dramaturgos latino-americanos?
Qual país mais lhe chamou a atenção?
Ou eles fazem peças políticas, ou mergulham profundamente no teatro de absurdo. É muito curioso porque, de repente, eles fazem um clima pirandelliano, um clima de um teatro que não é exatamente um teatro realista. Agora, o lugar que para mim é estimulante é Buenos Aires. Lá, mesmo com o teatro da Corrientes, que é um teatro de revista, bem comercial e de musicais, há teatros alternativos de altíssima qualidade. E os teatros alternativos não são como no Brasil, feitos em porões, pequenos lugares, mas em teatros importantes, revelando autores argentinos não só para o país, mas para o mundo. Então, tem gente muito forte por lá. Esse teatro alternativo tem um caráter às vezes político e às vezes experimental, de vanguarda, de invenção de linguagem, de criação de uma nova expressão.
Tendo em vista que o texto é uma peça fundamental para o ator, você considera que hoje há bons textos a serem encenados?
Acho que estamos vivendo um momento de grande retrocesso nas políticas culturais, os incentivos do ponto de vista federal, estadual e municipal praticamente desapareceram. Há um corte de grandes patrocinadores. Porque, se há crise, corta-se pela metade, ou mais, o incentivo à produção cultural. Antes havia um incentivo bem maior, uma política para as pessoas produzirem e escreverem. Agora, sinto uma tendência fascista crescente no século 21 e que passa a nos encarar, os artistas, como inimigos, marginais, degenerados. Um dos fatos mais graves é quererem acabar com a regulamentação da profissão de artista, com o registro do artista.
Por que isso está acontecendo agora?
Para ocupar o palco, havia necessidade da formação e da DRT [registro profissional de artista]. Havia uma dedicação à carreira para se afirmar como ator, diretor... E agora há a discussão de que qualquer um pode ser um ator profissional. Acho que uma ação dessas é para desmobilizar nossa profissão. Sempre estivemos na mira. Eu tenho 60 anos de carreira, passei pela ditadura, fomos atacados pelo CCC [Comando de Caça aos Comunistas], espancados... Proibiram obras de todos os autores nacionais durante muito tempo. Não havia Plínio Marcos, Augusto Boal, todos estavam proibidos. Isso desmobilizou muito a dramaturgia.
Você nunca foi apenas ator. Seu trabalho sempre foi de fomentador, seja dirigindo, seja formando atores. Essa foi uma estratégia sua ou uma questão de sobrevivência?
Acho que, para mim, é uma preocupação cultural. Sempre fui muito preocupado com o texto porque sou um ator de texto. Vivo dos bons personagens e, na falta desses textos, ou com a proibição deles, já escrevi peças como O Lobo de Ray-Ban e Cadela de Vison. Na verdade, não me considero autor. Fiz esses textos porque tinha vontade de expressar certas ideias. Minha preocupação é um teatro brasileiro fértil, suculento, cheio de possibilidades. E isso é difícil dadas às condições que a gente tem enfrentado do ponto de vista de uma censura econômica mesmo. A questão do patrocínio, algo que tomou conta a partir da década de 1980, mudou muito a produção teatral. Antes a gente ia ao banco pedir emprestado “x”. Normalmente pediam um fiador e o empréstimo era feito para ser pago em 90 dias. Passado esse período, pagava-se uma parte e renovava-se o restante para pagar em 60 dias. Para fazer teatro a gente levantava o dinheiro e ganhava com a bilheteria, que era o forte. Com a bilheteria, pagávamos salários, despesas, manutenção e muitas vezes, por conta da bilheteria, consegui fazer pesquisas na Europa. Era fértil a bilheteria, o teatro lotava toda noite em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tudo isso mudou.
Por outro lado, há uma grande quantidade de peças e espetáculos para todos os gostos. Na sua avaliação tem muita quantidade, mas pouca qualidade?
O que tenho visto são propostas interessantes, fortes e atuantes. Acho apenas que não há uma política cultural de apoio a esses movimentos mais alternativos. Neste momento, o apoio aos grupos de teatro é quase nenhum. A Cooperativa Paulista de Teatro, por exemplo, está reclamando porque todas as fontes de apoio estão sendo cortadas. Esse é um momento difícil para a sobrevivência dos grupos de teatro, porque a bilheteria do trabalho alternativo não é tão alta quanto a de um musical. Me preocupo muito com isso, porque eu mesmo me sinto no fio da navalha. Acho que esse vício de patrocinar espetáculo que tem um enorme volume de público causa uma atrofia daquilo que é a espinha dorsal, a alma do teatro paulista, que é o teatro de texto, de discussão. Esse tipo de teatro está ficando desassistido.
Como consequência, acaba surgindo uma monotonia temática e estilística?
O tipo de proposta que foi realmente a grande força do teatro paulista – montava-se Brecht, Tchekov, Boal, Guarnieri –, de repente, não está tendo ressonância para os patrocinadores porque estamos na mão de diretores de marketing. Quem julga para onde vai o dinheiro não é mais um Décio de Almeida Prado, um Sábato Magaldi. Não é mais essa gente que diz o que deveria ser apoiado, mas sim diretores de marketing que muitas vezes nem te conhecem. E se conhecessem achariam que não é bom para ver, que é muito sério, que o pessoal quer comédia. A gente enfrenta problemas muito graves. Eu não sei como será minha próxima produção, porque escrevi Minha Estrela D’Alva, um musical com a Laila Garin, e está difícil. A gente manda para um, para outro, e a resposta não vem.
Depois de meio século, você voltou a encenar O Rei da Vela, ano passado, no Sesc Pinheiros. Como foi esse reencontro com o texto de Oswald de Andrade?
Incrivelmente o texto se mantém atual. Oswald de Andrade sacou o DNA brasileiro. Aquela coisa que a gente não conseguiu apurar ainda e de que estamos falando. O Rei da Vela define minha vida em duas fases: antes era um Renato e depois, outro Renato. Me descobri verdadeiramente como ator depois dessa peça. Eu era um jovem aspirante, queria fazer bem as coisas, era nervoso, tenso. E depois me descobri como ator, dominando a linguagem, o palco. Pude somar todas as influências que tinha do teatro. Não só do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), mas de toda minha infância com Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves, Revista Brasileira... Isso tudo se somou e formou o ator que hoje eu sou. Outra coisa, eu tenho 81 anos, e para mim, fazer O Rei da Vela 50 anos depois foi uma proeza. Da primeira vez, tinha 30 anos de idade, muita energia, intensidade e gana. Dessa vez, coloquei essa força no palco, botei a plateia gritando, mas paguei com uma estafa brutal. Tenho a coluna toda operada com titânio de ponta a ponta. Com a idade ganha-se sabedoria, mas perde-se uma série de outras coisas. No entanto, não tenho a menor dúvida: fiz melhor agora do que antes.
Como você vê essa nova geração de atores?
Tenho feito algumas experiências em escolas. Percebi que é preciso trabalhar a expressão oral, a importância da palavra, a sonoridade da palavra. Porque às vezes esse realismo chulo de televisão leva as pessoas a falarem sem expressão. O ator de teatro tem que chegar até a última fila, e a força da palavra tem que estar na boca, na cabeça, no sentimento dele. Então, acho que se eu tivesse uma escola daria prioridade para trabalhar o ator e o texto. Somos um aparelho de transmissão de imagens: quando a gente fala, a gente está, praticamente, transmitindo as imagens do que diz. O ator é uma coisa assim, como eu digo nos cursos, uma antena parabólica: recebemos diversas influências do que vemos, lemos... Tudo isso vai formando em você uma bagagem, um recurso. Se você tem uma vida intelectual muito pobre, se não gosta de música, poesia, dança, literatura, você é um ator com menos recursos do que um que cultiva tudo isso. Seu repertório de expressão fica diminuído.
Quanto à peça Molière, ela oferece ao público a oportunidade de dar risada, mas também de refletir. Isso é comum nos textos de hoje?
Escolhi essa peça exatamente por isso. Acho que o público brasileiro merece entrar em contato com textos inteligentes e reflexivos. Textos que possam ponderar a situação que o país está vivendo. A peça Molière é extremamente atual do ponto de vista de quem faz teatro hoje [Molière é uma disputa entre a comédia, representada pelo comediógrafo Molière (Matheus Nachtergaele), e a tragédia, personificada pelo poeta Jean Racine (Élcio Nogueira Seixas)]. A peça traz uma força fascista – que represento como o Arcebispo de Paris, Monsenhor Péréfixe – de querer acabar, primeiro, com a comédia, e depois, com a tragédia, para incendiar todos os teatros. Levamos o público a refletir sobre a nossa verdadeira condição de artistas e sobre a liberdade para criar.
A peça também tem algo importante para um país como o Brasil: a comédia não é séria, o que é séria é a tragédia. A autora fala isso com muita ironia. Ela fala: “Eu sei que fazer as pessoas chorarem dá mais prestígio”. Mas acho muito mais difícil fazer comédia. A comédia é borbulhante, é champagne, e essa leveza também tem que estar na sua alma. Para os intelectuais, há uma valorização da tragédia, e não da comédia. Acho, por exemplo, que Com a Pulga atrás da Orelha [1984] foi uma das peças que mais tive prazer em fazer. Foi um exercício maravilhoso. Agora, acho que essa escolha pela comédia pode passar pelo desejo da plateia de não querer pensar: “Vou ali, assisto a uma peça, depois como uma pizza. Não quero que encham minha cabeça de problemas e não quero chorar”. Temos sempre que estar dispostos a rever, a pensar, a reinventar, e o teatro ajuda muito nesse sentido. Acho que em Molière as pessoas saem “alimentadas”, e isso é importante.
Como nasce um personagem para você?
São duas vertentes importantes: uma é a identificação e a outra, a imaginação. Não dá para saber como é o Édipo a não ser imaginando – um personagem que matou o pai, teve um filho com mãe, arrancou os olhos, como você vai medir isso na experiência que tem? A imaginação é importante. O jeito de falar, o jeito de tomar um café, é orientado por uma entidade que você vai descobrindo. Ele ama ou odeia? Você vai criando uma outra pessoa. Você não deixa de ser você mesmo, mas passa a ter uma outra pessoa na sua frente. Agora não existe a história de o personagem não aparecer. Temos um terceiro olho, o terceiro olho do artista que cria o personagem. Seu maestro, seu eu superior vê esse personagem e você empresta suas coisas para ele, mas você não vira outra pessoa.
Que personagem, ou quais personagens, você ainda gostaria de fazer?
Eu gostaria de fazer o Doente Imaginário [nome da obra do dramaturgo francês Molière cujo protagonista é um homem hipocondríaco], inclusive jogando o personagem no contexto da medicina atual. Porque sou um pouco como ele. Olha lá meu aparelho de pressão. Sou um cara ligado no exame de urina, exame de sangue, hemograma... Entendeu? Enquanto a trama rola, estou ligado nos aparelhos [risos].