Postado em 13/07/2017
Em um hotel com grande movimento de turistas, não chega a surpreender se encontrarmos, da porta giratória até a mesa do restaurante, apenas funcionárias mulheres. Exceto pelo carregador de malas, ofício cujo pré-requisito indispensável ainda parece ser a força física, é comum e natural para a maioria de nós que a recepcionista, a camareira, a cozinheira e a responsável pela limpeza das áreas comuns do local, dentre outras ocupações semelhantes, sejam do sexo feminino.
Apontado hoje como um dos setores com maior potencial de gerar desenvolvimento econômico e social, o turismo é um grande empregador de mulheres no Brasil. À primeira vista, ostenta um louvável equilíbrio de gênero. O fenômeno, contudo, é mais quantitativo do que qualitativo. Apesar de serem estatisticamente relevantes no setor, as mulheres costumam ocupar funções hierárquicas muito mais baixas do que os homens, estão menos propensas a atingir patamares de especialização e, consequentemente, recebem os menores salários dentro dessa cadeia. A constatação é fruto do estudo Global Report on Women in Tourism, organizado pela ONU Mulheres e lançado em 2010.
Atividades como cozinhar, lavar, passar e receber anfitriões foram consolidadas ao longo da história como atribuições femininas e, por isso, permanecem sendo delegadas a mulheres, ainda que elas não estejam mais dentro de casa, e sim no mercado de trabalho. No setor turístico, isso se agrava ainda mais. “Existe uma relação ambígua entre o turismo e a questão de gênero”, afirma a cientista social Carla Cristina Garcia, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUc-SP) e na Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Carla, que é autora de Breve História do Feminismo, dentre outros livros, alerta para a falsa ideia de equiparação de oportunidades que essa participação numérica das mulheres no turismo pode despertar. “Se por um lado você tem um aumento muito grande no número de mulheres que trabalham envolvidas no setor, por outro, são trabalhos que efetivamente continuam subordinando a mulher ao papel tradicional. Ou seja: na arrumação de hotel, na comida, na limpeza.”
De acordo com o estudo da ONU, a América Latina é a região do mundo com maior participação de mulheres no setor de hotelaria e restaurantes, cerca de 59% do total de funcionários. Por outro lado, em 2010, o estudo apontava que apenas 36% ocupavam cargos mais altos e profissionalizados. “Muitas mulheres continuam em papéis em que se continua a exigir a tal da boa aparência”, critica a professora da PUC. “A moça que está na frente do hotel, a aeromoça, são todas funções que exigem uma cordialidade dessas mulheres, é um reforço do estereótipo”, completa.
Na opinião de Carla Garcia, a discussão sobre o turismo não pode ser isolada dos problemas que atingem o mercado de trabalho de maneira geral. “Você precisa interseccionar isso. Uma moça que seja negra, gorda, que tenha o cabelo natural, por exemplo, dificilmente estará na ponta desse serviço de recepção, porque é exatamente o mesmo drama que existe em outros ambientes de trabalho. O mercado se estrutura no estereótipo, no lugar que se designa para a mulher no mundo público, e isso não é de jeito nenhum uma exclusividade do turismo”, diz.
A recepcionista Amanda Modena, de 27 anos, explica que essa exigência estética é realmente muito forte dentro do ramo da hotelaria. “Ainda é um setor cheio de regrinhas e preconceitos A meu ver, são coisas do passado que precisam ser mudadas e adaptadas”, opina a jovem, citando exemplos corriqueiros que ilustram o problema: “Cabelos presos, maquiagens, sapatos impecáveis de salto alto, postura rígida. Detalhes assim são cobrados”.
Gênero em classe: A professora Carla Garcia, que critica o fato de a participação feminina no setor de turismo estar geralmente restrita a trabalhos ligados à limpeza ou à hospitalidade. | Foto: Dalmir Ribeiro Lima
Panorama
A proposta do estudo da Organização das Nações Unidas é mapear as relações de gênero dentro do turismo e, a partir dos resultados, entender em que estágio de cada região do mundo se encontra na busca pela igualdade. Global Report on Women in Tourism gerou cinco metas: promover oportunidades iguais para mulheres trabalhando no turismo; inspirar o aumento do empreendedorismo de mulheres no setor; incluir mulheres a partir da educação e do treinamento; encorajá-las a serem líderes; e proteger mulheres vulneráveis e aquelas que trabalham em estabelecimentos familiares.
No turismo, segundo o relatório da ONU, as chances de uma mulher tocar seu próprio negócio são quase duas vezes maior do que em qualquer outro setor, e não à toa a ideia de empreender no setor é frequentemente apontada como um passo rumo à emancipação e ao empoderamento feminino. A aparente solução, contudo, é bem mais complexa. “Aquelas que trabalham fora do esquema de emprego em hotel, por exemplo, e têm seu pequeno negócio, têm com frequência um negócio informalizado, que ocupa a mão de obra da família e que portanto não remunera”, pondera Carla Cristina Garcia.
Na América Latina, os dados divulgados em 2010 apontavam que o setor de hotelaria e restaurantes tinha 70% das mulheres trabalhando na condição de family workers, ou seja, subempregos sem perspectivas de melhorias, sem possibilidade de ascensão e de formação de carreira. “Você tem essa precarização, que é utilizar mão de obra familiar, infantil às vezes, sem pagamento, porque é o jeito que elas têm de continuar fazendo as coisas, então, substancialmente, nesses casos não há melhorias”, completa a professora da PUC-SP e da USCS.
Para ela, a questão é problemática, pois de certo modo representa a captação do movimento feminista pelo neoliberalismo, tornando a luta por condições iguais de trabalho uma luta individual, e não mais coletiva e ideológica. “E é isso mesmo o que o neoliberalismo quer: quanto mais individualizada ficar a questão, menos reivindicações sociais você vai ter”, critica. “Além disso, esse discurso é montado a partir da submissão e, afinal de contas, nos países de terceiro mundo, de maneira geral, a responsabilidade pelos filhos continua a ser das mulheres, e aí essa vulnerabilidade é aproveitada por esse discurso”, completa.
Solange Veiga, de 50 anos, não é empreendedora, mas pode se orgulhar do lugar que alcançou no setor. Formada em publicidade e em pedagogia, turismo para ela até poucos anos atrás era só questão de lazer, e a perspectiva de atuar na área começou a surgir a partir de um hobby: o mergulho. “O proprietário da loja (de equipamento de mergulho) me chamou para trabalhar com eles, aí comecei a montar pacotes, fazer as viagens, guiar grupos e adorei tudo”, lembra. A experiência na agência do litoral de São Paulo não durou muito tempo, mas a ideia ressurgiu quando Solange retornou de uma temporada que passou na Inglaterra. “Quando voltei, fui para Ilhabela entregar currículos, e queria qualquer área do turismo pra começar. Dei sorte de um hotel boutique precisar de uma gerente, e aí já comecei num cargo administrativo”, conta. Segundo ela, a experiência de morar no exterior e a formação diversificada a ajudaram a conseguir o emprego, já que a intenção era lidar com hóspedes vindos de vários países e de diferentes culturas. Em julho deste ano, buscando novos ares, a gerente hoteleira passou a ir atrás de novas opções de trabalho no setor. Acabou contratada para gerenciar um hotel de luxo no litoral da Bahia, em Corumbau, considerada uma das praias mais belas e inóspitas do país.
As experiências de Solange Veiga e de Amanda Modena são diferentes. A primeira tem um alto cargo dentro da hierarquia do estabelecimento, coordena a operação do hotel e lida com funcionários e hóspedes, garantindo que tudo esteja no lugar. A segunda, por sua vez, lida com hóspedes e moradores, mas também controla a operação de caixa e garante que cadastros e reservas estejam todos organizados e sistematizados. Os dois casos, apesar de distintos, representam cenários favoráveis e otimistas dentro de um panorama complexo. Além do estudo da ONU, ainda há pouca informação disponível e revisada sobre a questão de gênero dentro do turismo, o que dificulta a elaboração de ações pontuais e metas pragmáticas para diminuir as desigualdades.
O Sindicato da Categoria Profissional dos Empregados em Empresas de Turismo no Estado de São Paulo (SETETUR), por exemplo, afirma que não há diferenças salariais entre homens e mulheres no setor. “Hoje em dia há um termo de igualdade, em que se ocupa os mesmos cargos, as mesmas hierarquias e os mesmos salários, tanto para direção quanto para vendas”, afirma Luiz Vecchia, presidente da organização há duas décadas. Os benefícios que o sindicato conquistou para a categoria são os tradicionais: dissídio anual sobre o salário, vale-refeição e uma gama de serviços sociais como médicos, dentistas, laboratórios, dentre outros. Na visão do presidente, o SETETUR, criado há 35 anos, não deve atuar no sentido de promover igualdade de gêneros. “Não vejo necessidade de atuarmos nessa frente, pois existe uma liberdade de escolha na parte patronal”, diz. Para Vecchia, a suposta igualdade “veio normalmente”. O sindicato, porém, não dispõe de dados estatísticos para basear essas conclusões.
No caso do Ministério do Turismo também não há dados que apresentem estatísticas com recorte de gênero. Segundo a assessoria da pasta, o setor gerou no Brasil 3,14 milhões de empregos formais em 2014, de acordo com estudo do Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC, na sigla em inglês). A única estatística fornecida pela pasta que apresenta diferenciação entre gênero saiu em 2016, e fala sobre a intenção de viagem das mulheres, dado obtido pela Sondagem do Consumidor - Intenção de Viagem, do próprio ministério. Segundo a pesquisa, a intenção de viajar sozinha cresceu 22% entre 2015 e este ano.
“Há uma grande dificuldade para promover ações contra discriminação quando você não tem dados precisos”, admite a procuradora do trabalho Sofia Vilela. Ela é vice-coordenadora da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidade e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade), criada em 2002 e atualmente uma das oito frentes de atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT). A Coordigualdade combate as formas de discriminação sobre gênero, raça, deficiência, orientação sexual e tudo o que estiver relacionado à promoção de igualdade no ambiente do trabalho.
Assédio sexual
Sofia conta que, independentemente do setor, o maior problema que a Coordenadoria enfrenta no tocante a questões de gênero é o assédio sexual. “É uma forma muito grande de violência contra a mulher, e acontece de forma silenciosa”, destaca a procuradora. Ainda que seja muito frequente, porém, ela explica que estatisticamente a quantidade de denúncias ainda é baixa dentro do MPT, ou porque as vítimas não se sentem à vontade para comprar essa briga, ou pela falta de provas concretas que possam ajudar na punição aos envolvidos.
Especificamente sobre o turismo, os esforços são dedicados ao combate ao trabalho infantil e ao turismo sexual. “O trabalho infantil e a exploração sexual são uma das piores formas de trabalho. Embora sejam proibidos, não deixam de ser comerciais, e a maioria das pessoas exploradas nesse ramo são mulheres”, explica. Carla Garcia aponta que o estereótipo da mulher complacente ajuda a reforçar o problema. “A imagem do acolhimento é sempre uma foto de mulher, nunca de um homem. No caso do turismo sexual, é um problemaço no mundo inteiro, principalmente em lugares onde já há rotas de turismo, porque além da exploração feminina da maneira mais vil, como o tráfico e a escravização, você tem ainda a coisa do exótico”, diz a professora.
Para o Ministério Público do Trabalho, o grande desafio na atuação é o reconhecimento de que a desigualdade ainda está aí. “A gente ouve que não tem mais, que a mulher não é discriminada, que assédio sexual não existe, que isso é tudo coisa de antigamente. As pessoas precisam entender que o problema persiste, e o primeiro passo para combatê-lo é reconhecendo isso, porque assim ficamos mais abertos a investigar e a entender quais são as demandas específicas no assunto”, adverte a procuradora, que explica a importância do empoderamento feminino nessa luta. “É muito importante que, ao viver uma situação de discriminação, de desigualdade, elas tentem conseguir algum tipo de prova. É essencial salvar e-mails, mensagens, e ter testemunhas que estejam dispostas a confirmar o fato. Caso contrário, a mulher diz algo, o empregador contesta, e isso dificulta o sucesso da causa no setor judiciário”. Em outras palavras, a falta de provas é grande dificuldade apontada por Sofia Vilela em casos de discriminação.
O estudo da ONU Mulheres dá uma série de sugestões de ação para lidar globalmente com as questões de gênero no turismo. Divididas entre cada elo dessa cadeia (emprego, empreendedorismo, educação, liderança e comunidade), as recomendações dialogam entre si e apontam a necessidade de promover ações concretas capazes de surtir efeitos duradouros, como iniciativas privadas e públicas no sentido de capacitação de profissionais, além de pesquisas e de sistematização de dados que monitorem o setor de forma constante a fim de identificar os gargalos dessa questão.
Na visão de Carla, as tentativas mais consistentes estão dentro das lutas dos movimentos feministas: “O capitalismo não é ruim só para as mulheres, ele é ruim para todo mundo, e é especialmente ruim para elas porque as coloca numa invisibilidade como força de trabalho, porque continua dentro da ideia de setor informalizado”. Na visão da estudiosa, no neoliberalismo a precarização do trabalho é maior. “Uma coisa que precisa ser reforçada é que não dá para discutir a questão de uma maneira isolada ou liberal, porque assim vai ser sempre ‘as mulheres e o turismo’. Se não houver intersecção, não vai adiantar nada”, alerta.
“Tanto faz se é no turismo, se é no banco, confecção, porque é o modelo como as empresas são geridas que explora o trabalho informalizado, precarizado, e as mulheres ganham menos que os homens nesse cenário”. Hoje, há no Brasil uma diferença de pagamento de quase 30% para homens e mulheres que ocupam o mesmo cargo e possuem o mesmo currículo, revela a especialista. A discussão sobre turismo e o debate sobre turismo ético, na opinião de Carla, são cruciais nesse contexto. “Isso faz os visitantes entenderem que as pessoas compõem o lugar, que a paisagem é habitada, e aí surgem outros questionamentos: o passo dois agora é ver quem são as pessoas que estão ali, e em que condições”, conclui.
Condições de trabalho das camareiras é desafio para o setor hoteleiro no mundo todo
Em qualquer tipo de hospedaria, mas sobretudo em resorts e redes hoteleiras, um serviço impecável depende em grande parte de uma função específica, majoritariamente exercida por mulheres. Responsáveis pela limpeza e pela arrumação de quartos, banheiros e outras dependências, as camareiras trabalham diariamente para que nada esteja fora de lugar. “Você pode ter o melhor sistema de marketing ou um design de interiores de última moda, mas se os quartos não estiverem limpos e ordenados, o serviço ao cliente será um desastre”, afirma o especialista Ernesto Cañada, autor do livro “Las que limpian los hoteles: historias ocultas de precariedad laboral”, dentre vários outros. Ao mesmo tempo em que exercem atividades indispensáveis, porém, essas funcionárias constituem a categoria de trabalho mais desfavorecida dentro do setor turístico.
Segundo Cañada, coordenador de uma associação catalã de pesquisa e comunicação para o desenvolvimento, a Alba Sud, são vários os problemas enfrentados pela classe: contratos muito curtos, terceirização, carga de trabalho excessiva e outras condições que deterioram sua saúde física e mental. Além disso, há repetidos casos de assédio sexual, outro fantasma que sempre ronda o cotidiano das camareiras. Em maio de 2011, o francês Dominique Strauss-Kahn, então diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), foi detido e renunciou ao seu cargo por tentativa de estupro a uma funcionária de um hotel em Nova York; nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, pelo menos quatro casos de assédio e estupro contra funcionárias da categoria foram reportados na Vila Olímpica, complexo habitacional destinado aos atletas participantes.
“O empresariado hoteleiro está reduzindo custos de qualquer forma que seja”, explica o especialista. Como o setor está perdendo espaço para outras dinâmicas de hospedagem, como alojamentos mais baratos e plataformas de reserva online, a tendência é que isso se acentue e prejudique ainda mais as camareiras. Por isso, na visão de Ernesto Cañada, a pesquisa a respeito do mundo do trabalho no turismo é essencial. “O conhecimento que temos sobre o que acontece neste universo é muito precário. Precisamos de uma investigação crítica, comprometida com os trabalhadores e trabalhadoras, e que seja realmente útil”, conclui.