Postado em 09/04/2018
Giselle Beiguelman, professora e pesquisadora, fala sobre a tecnologia na atualidade
Nunca se produziram tantos registros e nunca foi tão difícil ter acesso ao nosso passado recente. Estamos à beira de uma overdose documental, que abarca todos os formatos de mídias. Mas há também uma inegável intensificação dos processos de obsolescência, que vão do sucateamento dos dispositivos tecnológicos ao impedimento de acesso a sites e programas.
Não se trata apenas da emergência de diferentes escalas de armazenamento e do ritmo em que os conteúdos são colocados on-line. Tomando-se como referência a produção imagética da atualidade, estima-se que a cada dois minutos sejam produzidas mais fotos que o total registrado pela humanidade em 150 anos e que a cada 1 minuto, 300 horas de vídeo sejam disponibilizadas no YouTube. É toda uma nova cultura da memória que está em pauta. Ela subverte os princípios do arquivamento tradicional, baseado na lógica da seleção, descarte e organização de documentos.
Dizem que a internet não esquece, mas a obsolescência programada e a arquitetura de informação das redes não nos deixa lembrar. Entre problemas que vão de falências empresariais a novas padrões de segurança cada vez mais rígidos, o fato é que é bem difícil acessar sites mais antigos, especialmente quando se trata de sites artísticos, muito marcados por procedimentos experimentais.
Por esse motivo, a história da net.art, um tipo de arte criada para a internet, e talvez a mais jovem das artes, está sendo apagada, antes mesmo de começar a ser escrita.
Importantes museus, como ZKM, na Alemanha, MoMA de Nova York, Tate Modern da Inglaterra, e, no Brasil, o MAC-USP, vêm discutindo essa questão, e centros de pesquisa internacionais começam a desenvolver recursos para recuperar a memória não só da arte on-line, mas da internet como um todo.
Entre os projetos mais bem sucedidos estão: a Wayback Machine, do Internet Archive, e o Webrecorder, da Rhizome. A Wayback Machine é um programa de busca que permite navegar em versões antigas de um site, desde que os arquivos não tenham sido apagados dos servidores. O sofisticado Webrecorder é um gravador, não recupera nada. É pensado para evitar a perda futura, permitindo salvar a estrutura dinâmica das páginas e seus metadados.
Importantes recursos de pesquisa, esses instrumentos não recobram o acesso à imensa quantidade de sites bloqueados, perdidos em servidores falidos ou que simplesmente usam tecnologias inadequadas aos padrões de segurança que se firmaram com a Web 2.0.
Nessa arquitetura, consolida-se o modelo da computação em nuvem, baseado no compartilhamento de servidores interligados via internet. Operam nas nuvens desde redes sociais, como Facebook e Twitter, a empresas de software, como Microsoft, lojas como Amazon, iTunes, Google Play, serviços, como e-mail e armazenamento em drives virtuais, do tipo do Gmail, Outlook e Dropbox, além de programas governamentais de dados abertos.
A facilidade de uso é a razão de ser de seu sucesso, mas é também o que converteu a internet num espaço povoado de “cidadelas” fortificadas, onde as pessoas vivem dentro de alguns poucos sites e serviços populares dominantes. O uso é gratuito (não livre). O pagamento são nossos dados pessoais que disponibilizamos para acessá-los. Qualquer um pode tomar parte, porém apenas de acordo com as regras prescritas pelos algoritmos previamente programados.
Nesse novo mundo pós-nuvens, aplicativos independentes, abertos e gratuitos, desenvolvidos individualmente, que marcaram a produção artística dos anos 1990, tornaram-se potencialmente suspeitos. E para além do sucateamento tecnológico, a arte passa a lidar, também, com os desafios políticos da obsolescência ideológica do tempo das redes.
*Giselle Beiguelman é professora livre-docente da FAU/USP e pesquisa preservação de arte digital, arte e ativismo na cidade em rede e as estéticas da memória no século 21.