Postado em 04/04/2018
*Por Graziela Nunes
A mulher é um ponto elementar no cinema de Ingmar Bergman. O feminino não integra o rol de assuntos recorrentes na obra do autor, como o confronto com a morte, os questionamentos sobre o suposto silêncio de Deus, a existência arruinada e o exorcismo de seus demônios. Esses temas centrais, que definiram o termo bergmaniano, embora trouxessem as agruras de um homem vivendo no pós-guerra, à deriva das crenças, não limitou-se aos sintomas do seu tempo. Bergman foi um criador atemporal, magistral, imenso.
O diretor sueco dizia que preferia trabalhar com as mulheres pois a emoção do rosto delas era flexível, ele tinha fascínio por isso. Para Bergman, as atrizes não viam problema em olhar para si mesmas, em bisbilhotar sua própria alma. A isso, ele atribuía o tipo de educação recebida por elas, a facilidade para ver-se e reconhecer-se no espelho e mais tarde na câmera, molduras que dariam acesso a incursões, segundo ele, típicas do feminino.
Isso era um trunfo para a direção que queria alcançar, elas foram suas cúmplices. Sabemos muito do cineasta por meio delas. Suas obras de destaque estão no cerne da interpretação feminina. O espelho era uma alegoria solitária capaz de trazer atuações limpas ou livres de máscaras (persona) e por isso mesmo reveladoras, que ampliaram as investigações do diretor num jogo de alteridade.
Seu elenco, tanto masculino como feminino, era reincidente e Bergman era tido como um extraordinário diretor de atores/atrizes. Liv Ullman, Bibi Andersson, Harriet Andersson, Ingrid Thulin, todas companheiras de set ou de teatro, algumas pares num romance. Todas elas contribuíram, não em coadjuvância, mas fundamentalmente como a definição do que viria a ser o cinema de autor bergmaniano.
Diferente dos personagens masculinos em suas jornadas diante de respostas, as personagens femininas, mais fortes e torturadas do que frágeis e à margem, aparentam ter noção do que acontecem com elas. Há mais certezas do que dúvidas. Elas não vivem paralelamente às histórias que contam. É como se essas atuações oferecessem ao público as rubricas, as notas de rodapé.
Mas embora as mulheres estejam evidentes em suas obras e a fascinação por elas seja uma das suas principais fontes declaradas, o feminino não se estabelece exatamente como tema central, apesar das significativas homenagens. Não é um lamento, é uma característica.
Claro que as peculiaridades ficam mais nítidas, por exemplo, na irmandade cruel de Gritos e Sussurros, na tormenta da mulher abandonada em Cenas de um Casamento ou mesmo em Fanny e Alexander, cujas memórias pessoais aparecem num garoto que carrega a representação do diretor, mas cabem às personagens femininas as rédeas e a definição do que está em análise. Nos momentos finais uma delas diz: estamos de novo no controle.
As idiossincrasias femininas não despontam somente nas histórias protagonizadas por mulheres e não são típicas das atuações. Mesmo nas investigações e situações comuns aos gêneros, ele não neutraliza homens e mulheres, não há recusa à sujeição biológica. Neste caso, temos a mulher calada, que murmura uma única frase em toda trama, em O Sétimo Selo, quando não resta mais nada, já no triunfo da morte. Ou a "companheirinha", que é como se refere à personagem amante do pintor em A Hora do Lobo. Nessas circunstâncias coadjuvantes, essas natureza de subjugação surge à espreita, é miúda, mas sintomática, em em confronto com momentos que o diretor as eleva.
A favor de nós, ele utiliza até mesmo as personagens de sua obra prima, Fanny e Alexander, em afronta àquele que seria uma espécie de seu irmão-guru, o dramaturgo Strindberg. Quando, na cena final, Emilie diz à sua sogra que gostaria que ambas estivessem na montagem de O Sonho, a personagem se desespera: “Aquele homem que odeia as mulheres? Nunca!”.
Bergman disse: “A fascinação pelas mulheres é uma das minhas principais fontes. A obsessão implica ambivalência, tem algo compulsivo nisso”.
O diretor foi e será a melhor pessoa para nos dar pistas concretas de sua própria obra, aqui tudo é especulação. Essa síntese dele é uma janela que abre e outra que se estreita. Mas tomando suas palavras no prólogo do filme Para não falar de todas essas mulheres, "gênio é aquele que faz os críticos mudarem de ideia".
Para mim, como espectadora, ao final, seus filmes garantem sempre o mesmo efeito: eu emudeço em crise, como a atriz principal no papel de Electra. Tudo vira um nevoeiro e com os olhos ainda encobertos tudo isso pode ser uma impressão, totalmente ambivalente.
A retrospectiva Bergman: Para falar de todas essas mulheres, promovida pelo Sesc Rio Preto para festejar o centenário de nascimento de Ingmar Bergman (1918- 2007), é a chance para inaugurar o olhar para obras decisivas de sua filmografia, como O Sétimo Selo, A Hora do Lobo, Morangos Silvestres, Fanny e Alexander. Mas como o próprio título anuncia, o recorte da mostra é sobre a perspectiva do feminino em seus trabalhos, notória em Monika e o Desejo, Gritos e Sussurros, Persona, Sonatas de Outono.
Graziela Nunes
Jornalista e gerente adjunta do Sesc Rio Preto