Postado em 29/03/2018
Sociólogo destaca o valor da culinária no processo de constituição
da identidade nacional e afirma que as pessoas são aquilo que comem
"Você é tudo o que come. É a subjetivação desses produtos”, enfatizou o sociólogo Carlos Alberto Dória para a turma atenta que acompanhou o ciclo de palestras Introdução ao Estudo da Culinária e da Gastronomia, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em dezembro. Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com pós-doutorado na mesma universidade, e professor na Faculdade das Américas, Dória é um dos principais pesquisadores da alimentação e da gastronomia no país. Seus estudos originaram livros como Formação da Culinária Brasileira (Três Estrelas, 2014), em que apresenta a trajetória da cozinha do país desde os tempos coloniais até hoje, abordando, entre outros assuntos, as técnicas culinárias e os processos sociais que levaram à criação dos hábitos alimentares e pratos nacionais. Confira trechos das palestras, a seguir.
Foto: Leila Fugii
É parte de um sistema alimentar mundializado, um sistema de representação de práticas alimentares – ocidentais ou não – incrustadas na ideia de nação, que se forma no último quartel do século 19 de acordo com a necessidade ideológica do jovem país. Por que precisamos de uma culinária? Um belo dia, os camaradas envolvidos na discussão sobre o que é a nação apostam em ter uma literatura e música próprias. O Cozinheiro Nacional é um livro que surge em meados de 1870 (não há uma data precisa de sua publicação), com o objetivo de definir o que seria a culinária nacional. A ideia de nação precisava desses conteúdos simbólicos, da construção da culinária nacional, a qual se dedicarão especialmente Gilberto Freyre (1900-1987) e [Luís da] Câmara Cascudo (1898-1986), até os anos 1930.
A culinária brasileira é um objeto de mitificação quando referida a um universo cultural moderno no qual a nação já não tem tanta importância como conceito, sendo substituída por uma globalização econômica e cultural. Qual o sentido de se falar em nação em termos culinários? A nação não existe mais à mesa, porque esse conceito de nação não se aplica ao recorte ideológico. Quando falamos em “resgatar a nossa culinária, fazer receitas tradicionais”, o interesse é mitificador. Se pensarmos a nossa cozinha, ela se forma em rede: Portugal, na época dos descobrimentos se relacionava com a Índia, a China, o mundo árabe. A nossa cozinha é fruto dessa conexão.
Especialmente depois da Revolução Francesa, da experiência napoleônica, a França passa a ser uma referência para o mundo todo. Como disse [o sociólogo alemão] Walter Benjamin, Paris é a capital do mundo ocidental durante o século 19: fala-se francês por todo lado, fala-se francês na corte brasileira, nos engenhos em Pernambuco; temos um afrancesamento da burguesia mundial. A cozinha de elite era essa cozinha afrancesada, já no século 19, à qual pertencem todas as burguesias nacionais. E o que podemos entender como cozinhas populares? Elas se formam na interação entre os elementos populares – trabalhadores de qualquer tipo – com os ambientes específicos e com os índios, escravos. É algo que surge do mundo do trabalho.
A diferença entre a cozinha de elite e a cozinha popular é que esta última não tem unificação. Não existe uma cozinha popular brasileira, existem várias cozinhas populares no Brasil; não podemos identificar uma cozinha popular em específico, como a cozinha de elite. Até recentemente em minhas palestras eu perguntava quem havia comido tucupi e ouvia “ninguém” como resposta. Logo, o tucupi não se comunicava com a população de outras regiões [além do Norte do Brasil]. Temos na culinária popular um potencial de desenvolvimento e conhecimento enorme.
Você é tudo o que você come. É a subjetivação desses produtos objetivos. A sua subjetividade pertence ao consumo do que foi produzido pelos homens. Quando analisamos a técnica, ou seja, os modos de fazer, estamos no domínio técnico, que implica o domínio do corpo e um projeto cultural ao qual essas técnicas servem. Olho uma torta de maçã e a reconheço. Fiz algo que as pessoas entendem como uma torta de maçã.
Se parto da natureza, posso fazer uma seleção natural de um ingrediente qualquer, o leite, por exemplo: aplico um tempo de trabalho com técnicas e tenho como resultado o produto um, o queijo. Qual a diferença entre ingrediente e produto? É a posição que ocupa no processo de produção. No início há o ingrediente e no fim obtemos o produto. Ao utilizar o queijo em outra sequência de trabalho para obter um pão de queijo, nota-se que, de produto no primeiro processo, o queijo passou a ser o ingrediente. Quando acessamos a informação de que o Brasil é rico em ingredientes naturais, isso é bobagem. Pois há ingredientes desde que exista um processo de trabalho. O que posiciona um elemento como ingrediente é seu ponto de entrada nesse processo, e não uma qualidade natural. Biodiversidade não significa riqueza de ingredientes. Eles se tornam comida conforme as formas de tratamento.
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