Postado em 28/02/2018
De opressor a amigo, o conceito de pai ganhou novos contornos nas últimas décadas, como assinalou a historiadora Mary Del Priore em História dos Homens no Brasil (Ed. Unesp, 2013): “Hoje, os pais não ocupam – ou não desejam ocupar – um papel de puro autoritarismo. Gritos e ordens não funcionam mais como reguladores do equilíbrio familiar. Apenas denunciam um indivíduo violento, contra o qual existem sanções. O papel do pai, ao contrário, é tornar possível o encaminhamento da criança, desde sua realidade biológica de pequeno ser vivo até a maturidade e sua integração social”. Assim, de que forma os homens do século 21 estão exercendo a paternidade? Quem reflete sobre esse cenário são os coordenadores da ONG Instituto Papai, Benedito Medrado, Marina Azevedo e Jorge Lyra, além da coordenadora de comunicação da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, organização que promove o fortalecimento da causa da primeira infância no Brasil, Paula Perim. Afinal de contas, na atualidade há barreiras socioculturais para os pais?
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Benedito Medrado, Mariana Azevedo e Jorge Lyra
Em 1979, a telenovela Pai Herói trazia como tema de abertura a música Pai, composta e interpretada por Fábio Júnior, em homenagem a seu pai (já falecido na época). Sua melodia é ainda hoje lembrada no Dia dos Pais. Em sua letra, os encontros e desencontros, dores e alegrias da relação entre um homem de 20 ou 30 anos e suas memórias em busca do pai e de paz.
Quase 40 anos depois, narrativas heroicas de paternidade ainda povoam o imaginário social, e muitos se emocionam com enredos que carregam de afeto a paternidade e que alimentam a publicidade. Neste ensaio, buscamos abordar a paternidade para além dessa dimensão relacional. Entendemos que as relações de cuidado produzidas por homens são atravessadas por memórias e afetos, mas também por regimes de verdade que se constroem a partir de diferentes instituições que (re)produzem e regulam modos de ser homem, em nossa sociedade. Regimes que inscrevem a paternidade num campo simbólico particular em que o cuidado muitas vezes não é compreendido como experiência masculina genuína.
Chamamos essa rede complexa e heterogênea – que envolve palavras e outras ferramentas – de dispositivo, tomando emprestado o conceito do filósofo Michel Foucault. Assim, para pensar o dispositivo da paternidade nos dias atuais, precisamos enfatizar que, nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 1990, tem havido um conjunto de iniciativas que provocaram deslocamentos no modo como se percebe e se vive a paternidade atualmente.
Nesse cenário, destacam-se duas conferências internacionais de grande relevância para esse campo: a Quarta Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Egito (1994), e a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada na China (1995). Nesses fóruns de discussão, afirmou-se como diretriz a busca de maior participação masculina na promoção dos direitos sexuais e reprodutivos, especialmente no que se definia como “saúde materno-infantil”.
No Brasil, em 1997, surge o Instituto Papai, ONG feminista, sustentada em muitos dos argumentos produzidos naqueles dois fóruns e em consonância com princípios e diretrizes do movimento feminista, ao reconhecer que, por lutar pela emancipação das mulheres e ressignificação dos ordenamentos de gênero, esse movimento social impôs, inevitavelmente, uma reavaliação da noção de masculinidade e deslocamentos dos sentidos de paternidade. Emancipação que influenciou diretamente o modo como pensamos e vivemos hoje a paternidade.
Assim, como parte desse projeto político institucional, propomos, aqui, uma reflexão crítica sobre o exercício da paternidade, a partir de uma perspectiva feminista de gênero. Para tanto, é necessário operarmos com a lente da desnaturalização dos lugares tradicionais de gênero, fazendo com que questionemos comportamentos e características usualmente associados ao masculino em nossa sociedade. Ou seja, não podemos compreender as relações pessoais sem considerar o contexto político e social no qual estão inseridas.
Por exemplo, no campo das relações de trabalho, é preciso reconhecer que a grande diferença entre o tempo da licença-maternidade (120 dias) e o da licença-paternidade (cinco ou 20 dias) pressupõe que ainda cabe à mulher a responsabilidade quase exclusiva pelo cuidado infantil, desconsiderando a possibilidade de divisão equitativa do cuidado e negligenciando diferentes configurações familiares. E se o pai for solteiro? E se forem dois pais? Parece que ainda há muito por caminhar até a desejada “licença parental”.
Muitos homens que desejam se envolver mais no cuidado de seus filhos e filhas se veem impedidos disso em diversas situações. Não podemos esquecer que, numa sociedade capitalista, que valoriza e reconhece apenas o trabalho remunerado como produtivo, não se envolver no cuidado das crianças ainda é um privilégio para os homens e uma sobrecarga para as mulheres.
No campo da educação, também observamos uma recorrente separação entre as brincadeiras “de menina” (associadas ao cuidado infantil e ao lar) e “de menino” (associadas a competições e violência). Até mesmo em espaços institucionalizados de cuidado, como creches, raras vezes encontramos homens como educadores. Seja por resistência deles ou dos pais e gestores, que temem deixar crianças pequenas sob os cuidados de um homem. A escassez de trocadores em banheiros masculinos é outro exemplo dessa “arquitetura de gênero”.
Essas são apenas algumas situações que exigem, de todos, uma leitura mais complexa sobre paternidade. Especialmente nos dias atuais, em que modelos coloniais de paternidade ocupam o cenário político nacional e nos exigem tomadas de posição críticas.
Além disso, se para os homens em geral tais barreiras se fazem sentir cotidianamente, é importante refletirmos sobre como homens que têm suas experiências de vida entrecortadas por diferentes marcadores de desigualdade possuem menos condições para o exercício da paternidade. Homens adolescentes, pobres, negros, gays, solteiros e transexuais, por exemplo, encontram-se em contextos de desigualdade e estão associados a estereótipos que os afastam da ideia e da possibilidade de exercício do cuidado.
Dessa forma, pensar o exercício da paternidade a partir de uma perspectiva feminista de gênero nos coloca o desafio de, primeiramente, pensar na forma como a nossa cultura (re)produz, em suas instituições, sentidos sobre o que é ser pai, (in)visibilizando práticas. Em segundo lugar, questionar como esse universo simbólico e as desigualdades sociais informam as práticas de sujeitos diversos (marcados por classe, raça, idades e contextos). Por último, refletir sobre diferentes sentidos atribuídos à paternidade e como eles podem construir, ou questionar, desigualdades de gênero.
Benedito Medrado é psicólogo social, cofundador da ONG Instituto Papai e do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidade da Universidade Federal de Pernambuco (Gema-UFPE), além de coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE.
Mariana Azevedo é doutoranda em Sociologia e atual coordenadora do Instituto Papai.
Jorge Lyra é psicólogo social, doutor em Saúde Coletiva, cofundador do Instituto Papai e do Gema-UFPE, docente dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da UFPE.
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Paula Perim
Espero, sinceramente, que a resposta seja um sonoro: “Não”! E que você, que é mãe, responda isso com muita certeza e orgulho do que diz, no caso do seu filho ter um pai que participa de verdade da criação, da atenção, dos cuidados, dos abraços, do dia a dia com a criança. Estamos em 2018 e não há mais espaço para comemorar cada fralda trocada pelo pai. É simples: #PaiNãoAjuda #PaiParticipa. É o melhor que ele pode fazer para o desenvolvimento da criança, pelo casal e por ele mesmo.
Pesquisas das áreas da neurociência e da psicologia comprovaram que a primeira infância, período que vai do nascimento aos seis anos de idade, é crítico para o desenvolvimento cerebral da criança e para a aquisição de habilidades que lhe servirão para a vida toda. A capacidade de aprendizado, as primeiras interações sociais com a família e, depois, na escola, os movimentos corporais com a coordenação motora testada e treinada a todo instante, tudo acontece intensamente nesses primeiros 72 meses de vida. E o ponto fundamental: o afeto e o carinho são o motor para que esse desenvolvimento aconteça na sua plenitude.
As mães sempre foram protagonistas dessa história – e por motivos óbvios. São elas que carregam o bebê no ventre, enjoam, sentem as dores do parto, amamentam, estão naturalmente mais próximas do filho. A mãe cuidadora, que sustenta o bebê com seu leite e seu colo, representada nas artes, desde os tempos mais remotos, na publicidade e no cinema, criaram a imagem de uma mulher – agora mãe – que não precisa da presença do pai para sua tarefa primordial, a maternidade. Cabia ao pai a função de prover, de proteger a família, estabelecer as regras, dar os limites.
A progressiva mudança do papel da mulher na sociedade, com sua entrada no mercado de trabalho, especialmente a partir da década de 1970, foi aos poucos modificando o lugar do homem na família. O cinema americano, as novelas brasileiras e a publicidade foram dando sinais dessa mudança. Aos poucos, os homens apareciam como habilidosos cozinheiros, interessados em decoração ou mais explicitamente vaidosos do que em qualquer outra época. Seguindo o mesmo caminho, pais levando crianças para a escola, trocando a roupa do filho ou falando sobre as alegrias e dificuldades da paternidade formaram uma cena mais comum. No entanto, o lugar desse pai, o seu papel – que não é (ou não deveria ser) o do colaborador, do ajudante ou, mais passivamente, do espectador – ainda tem vários desafios para se estabelecer.
Um trabalho produzido em 2016 pela organização não governamental Promundo-Brasil, intitulado A Situação da Paternidade no Brasil, contextualiza esse lugar do pai na família. Este trecho apresenta a situação: “Interessante notar que o debate público a respeito da paternidade foi inicialmente centrado na ‘não paternidade’, ou seja, na ausência dos pais, um fenômeno que possui raízes profundas em nossa história, muito marcada pelo patriarcado, pelo machismo e pela divisão sexual do trabalho. Nessa conjuntura, a máxima ‘o filho é da mulher’ permanece presente não apenas no discurso popular, como também no de diversas instituições de nosso país”.
Fato é que, a despeito do que está escrito em nossos marcos legais, a cobrança pelo cuidado das crianças ainda recai prioritariamente sobre as mulheres, como se isso fosse um destino “natural”. Já para os homens, persiste certa tolerância relacionada à não participação, ao abandono ou ao não reconhecimento das filhas e filhos, o que pode ser ilustrado pela estimativa de mais de cinco milhões de estudantes brasileiros(as) que permanecem sem o nome do pai na certidão de nascimento e no documento de identidade.
Se a mudança cultural caminha, como sempre, a passos curtos, uma conquista legal, em 2016, representou um grande salto. O Marco Legal da Primeira Infância, Lei Federal nº 13.257, foi aprovado por unanimidade no Senado. Ele coloca a criança, do nascimento aos seis anos de idade, como prioridade no desenvolvimento de programas, na formação dos profissionais e na formulação de políticas públicas. Um dos destaques da lei é a ampliação da licença-paternidade de cinco para 20 dias no caso de funcionários de empresas que fazem parte da Empresa Cidadã, um programa federal. E essa prorrogação da licença-paternidade vale também para funcionários que adotarem crianças. O objetivo é que o pai possa passar mais tempo com a criança nesse momento fundamental do desenvolvimento, fique próximo do bebê e da mãe, inicie a criação de um vínculo para a vida toda.
As pesquisas sobre desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e social da criança, especialmente do nascimento aos seis anos, se apresentam de maneira cada vez mais contundentes, propondo que a sociedade e as políticas públicas atentem para os desdobramentos que os cuidados e estímulos adequados podem ter na vida das crianças, da família e da sociedade. Nesse contexto, o pai, e não apenas a mãe, passa a ser sujeito dos cuidados com o filho e corresponsável pelo seu desenvolvimento e bem-estar físico e emocional. Essas discussões colaboram para que a integração do pai nas tarefas e no prazer da convivência e da intimidade com as crianças seja reforçada. Ganham todos: as crianças, com os diferentes estímulos proporcionados por essa convivência; as mães, que ficam menos sobrecarregadas; e os pais, que também passam ser protagonistas da história.
E, na sua casa, como isso funciona? Conte sua história nas redes sociais colocando as hashtags #PaiNãoAjuda #PaiParticipa.
Paula Perim, mãe da Júlia, 20 anos, e da Beatriz, 19 anos, é coordenadora de comunicação da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, organização que promove o fortalecimento da causa da primeira infância no Brasil (www.fmcsv.org.br), além de autora do livro 101 Ideias para Curtir com Seu Filho – Antes de Ele Completar 10 Anos (Ed. Globo).