Postado em 06/02/2018
Texto: Eliane Simões
Perceber o vento soprar na pele e enxergar o sabor da brisa brilhante que se ouve ao longe. Mistura de sentimentos suaves e penetrantes, que permitem respirar e entender o que importa.
Esse é o desafio que um garoto cego, no documentário As Cores das Flores, precisa enfrentar. Auxiliado pela mãe, ele procura entender o processo cognitivo de visualização das cores, que se dá por meio de fotorreceptores cerebrais. Mas é visitando uma área natural que consegue montar sua própria interpretação: há uma cor/flor para cada passaro!
Nossos sentidos se tornaram cegos. Não sentimos a nós mesmos e nem aos outros. Entregamo-nos à mediação tecnológica e às demandas que criamos a partir dela. Vibramos na frequência do celular.
A reinterpretação das vibrações da nossa própria natureza é o primeiro passo. Sentir a presença do corpo no espaço, o cansaço que a mente imprime em nossos músculos e olhos. Permitir que o ar flua longamente, permeando cada célula. Captar a frequência sutil da vida lá fora, ouvidos impregnando-se de novos matizes, para enxergar a vida, que pulsa e existe antes de nos darmos conta de nossas capacidades humanas.
E por que tudo isso mesmo? Qual era o plano? Até onde será possível prosseguir? Estamos preparados para evoluir com a natureza (ou sem ela)? Teríamos outras opções para produzir água?
É isso que cada um pode encontrar em uma simples trilha na mata. Em seu caminho, a sua resposta. O importante é que cada um se emocione novamente, reverbere a partir dos pequenos detalhes.
Quando eu era adolescente, costumava olhar para as ruas intensamente urbanizadas e enxergava vales e morros, recobertos de oresta e entrecortados por água cristalina, animais de toda sorte, em toda parte. O contato permanente com a cidade abrangente e permeando tudo me sufocava. Imaginava, com meu amigo Júlio (onde estará ele agora?), fundar outra sociedade, mais justa e amigável, em uma ilha deserta, onde pretendíamos começar tudo de novo.
A compreensão radical de incompatibilidade completa entre sociedade e natureza foi-se modificando. Uma ansiedade vital conduziu minhas várias escolhas seguintes: cursei Biologia, mudei-me para Ubatuba, morei numa vila caiçara isolada e estudei comunidades tradicionais. A vida transparente e autêntica, entre as pessoas e os seres da natureza, me encantava.
Quanto mais compreendia e vivia em meio à natureza, dissecando-a (literalmente), mais entendia a necessidade da recolocação das relações entre os homens, em busca de justiça socioambiental.
Compatível é: sociedade e natureza. Afinal, uma emerge da outra. Mas, a partir dessa relação, o que dizer daquele que não mais sobrevive sem whatsapp, que precisa de “Marianas” e “Belos Montes” para existir?
O que será que as árvores, as flores, o oceano e a terra teriam a dizer-nos sobre isso? Somos capazes de ouvir? Precisamos do estranhamento e, ao mesmo tempo, da comunhão para captar.
Eliane Simões é bióloga e atua como educadora na área de conservação ambiental há 32 anos, dos quais 22 dedicados à gestão de unidades de conservação. Ela participou do processo de planejamento da trilha com desenho universal para a Reserva Natural Sesc em Bertioga.