Postado em 05/02/2018
“Da forma como tenho pesadelos e lamento a minha limitação, eu tinha tudo para ser um suicida, um louco ou um drogado, mas os desabafos literá- rios me dão uma energia incrível.” A declaração é de Glauco Mattoso, cujo pseudônimo deriva da doença que lhe deixou completamente cego em 1995, o glaucoma. Hoje, aos 66 anos, o escritor soma mais de 50 livros publicados, grande parte deles de conteúdo erótico, violento e, naturalmente, político.
Por causa do tom pessimista e dos temas aos quais se dedica, como o abuso, a discriminação, a cegueira e a sexualidade, Glauco é frequentemente chamado de Boca do Inferno ou de “Bocage do século 20”. Falando assim, pode parecer uma pessoa amarga, mas os preconceitos caem por terra nos primeiros segundos de conversa.
Sentado confortavelmente no sofá de sua casa na Vila Mariana, o poeta conta sua história com desenvoltura; pronuncia todas as sílabas das palavras, de forma calma e pausada. É, por assim dizer, o que muitos jornalistas poderiam chamar de “o entrevistado perfeito”. Nada escapa da sua aguda observação. Para todas as perguntas ele faz digressões e constrói longas narrativas em torno do assunto.
Suas obras hoje ostentam uma ortografia antiga, a etimológica. Explicando de forma breve, isso significa escrever farmácia com “ph” e abraço com dois “b”, dentre várias outras adaptações ortográficas que podem ser conferidas no poema da página 23, escrito com exclusividade para a Cadernos Sesc de Cidadania.
A decisão de Glauco tem a ver com a reforma promovida pelo governo ditatorial de Getúlio Vargas: “Foi uma indústria de fabricação de livros novos. Eu não poderia concordar com isso”. De 1980 a 2009, no entanto, ele foi obrigado a escrever na ortografia oficial porque, do contrário, não seria publicado. Aí, “quando eles fizeram mais uma reforma idiota para tirar o acento de ‘ideia’ e essas porcarias todas”, o escritor perdeu a paciência e adotou a velha regra, a etimológica. Hoje, todos seus escritos são assim.
Glauco, ou Pedro José Ferreira da Silva, seu nome de batismo, cursou biblioteconomia em São Paulo, de onde vem seu apreço pela literatura e pela ortografia antiga. Começou no mundo literário na década de 1970 em meio à ditadura militar com o fanzine “Jornal Dobrabil” – um trocadilho com “dobrável” e “Brasil”. Seus poucos exemplares eram mandados para pessoas de influência como Caetano Veloso e Millôr Fernandes, que o apadrinharam. Quando a repressão estava mais branda, ele passou a colaborar com o tabloide gay “Lampião”.
Politicamente Incorreto
Na época, escolhendo a dedo as palavras vulgares que usaria nas suas obras, Glauco Mattoso não chegava a ser publicado nos jornais de maior circulação, em parte por ainda não ser tão conhecido, e em parte pelos palavrões que misturava a termos eruditos.
O politicamente incorreto, se é que se pode chamar assim, é só uma de suas facetas. Se por um lado o poeta denota pessimismo e revolta pelo fato de ter ficado totalmente cego nos anos 1990, ele tem grande esperança e otimismo em relação a outros assuntos, como a conquista de direitos LGBTs. “Eu vivenciei a fase da repressão, a fase em que os gays tinham que ficar enrustidos”, diz.
Atualmente, embora reconheça que há ainda preconceito e violência com o movimento, o escritor entende que houve tremendo avanço. “Naquela época você nem conseguiria imaginar uma passeata gay de 10 ou 20 pessoas na rua. Precisava de muita coragem. Hoje você tem um evento que já está incorporado ao calendário turístico da cidade”, reflete.
Seu companheiro, Akira Nishimura, acompanhou a entrevista. O casal está junto desde 2001. Há uma década, conseguiram o documento de união estável homoafetiva, efeméride que foi comemorada neste ano com a certidão definitiva de casamento.
Sadomasoquista, cego e homossexual, Glauco sempre fez parte da minoria. Sofreu preconceito e discriminação até mesmo de grupos que poderiam parecer mais alinhados aos movimentos das minorias. “A esquerda tradicional nunca se conformou com o movimento gay. Ela o encarava como uma decadência burguesa, contra a família e a moral operária, aquela coisa do macho ser o comandante, e a mulher, a companheira”, critica.
É das contradições que o poeta se alimenta. Acostumado a ser chamado de louco e pervertido, a verdade é que Glauco nunca se conformou com rótulos. Sempre foi adepto do “viva e deixe viver”. “Eu sou um místico. Eu acredito no sobrenatural. E acredito em uma espécie de missão da pessoa. Acho que a puta se realiza como puta, se ela quiser isso, o ladrão como ladrão, e assim por diante. E eu como fetichista, sadomasoquista e cego literato também tenho meu papel nisso.”
Para ele, pessimismo e otimismo andam juntos. “Parte da minha obra é impiedosa com tudo, não só com a cegueira. Mas isso tem outro lado, de se juntar a todos os perseguidos e humilhados e fazer uma voz de protesto, mas não aquela voz convencional. Bem crua: eu estou me assumindo como inferior para mostrar que essa questão da inferioridade é falsa.”
O escritor relata as suas histórias sempre com serenidade, ora com um tom mais sério, ora mais irreverente. Fala de forma satírica as discriminações que sofre. Demonstra, a todo instante, que é um ser humano complexo e contraditório, com impulsos conservadores e liberais simultâneos.
A deficiência, o abuso sexual e o bullying sofrido na infância são alguns dos pesadelos que Glauco carrega. Como desabafo e denúncia, utiliza esses temas como combustível para sua obra literária. É por isso, inclusive, que ele acredita que a cegueira “pode ser um instrumento de denúncia social, de humanismo, de cidadania”.
É da infância que surge outra contradição e outra faceta inesperada do poeta. Em 2012, de forma inesperada, foi convidado a escrever um livro infantil. Para tanto, selecionou temas mais leves e publicou A predileta do poeta, com memórias agradáveis de um cachorro bassê que teve quando criança. Gostou da experiência. Um dos seus hobbies é comer. Adora comidas pesadas, gordurosas e bem temperadas. Ele reluta, mas assume que precisou dar uma maneirada nas garfadas por causa da diabetes que desenvolveu há alguns anos.
Poupador e metódico, Glauco planeja seus textos e seu futuro com meticulosidade. Não tem celular e pede ajuda para que administrem suas contas nas redes sociais – afinal, questiona, para que tanta perda de tempo? “É improdutivo. Para mim, é muito mais interessante ficar escrevendo meus textos”, conclui.
Rhapsodia da Inaccessibilidade
Calçada agora serve para tudo:
deposito de lixo, material
de exgotto e construcção, como quintal
ou estacionamento ao par desnudo.
É sala de visitas ou entrudo
aos anjos e marmanjos, e a geral
que assiste a uma pellada occasional,
affora qualquer outro contehudo.
Virou casa da sogra e se destina
a tudo e todos, menos à cidade
humana, principal finalidade
dum publico caminho, esquina a esquina.
O cego é quem se fode! Elle que nade
no lodo da sargeta, à fedentina
subjeito, e que se borre, ou tire a fina
no meio duma escada e duma grade!
Antigos orelhões, uma officina
mechanica no meio do passeio,
buracos e boeiros, algum cheio
da suja agua da chuva... E o cego opina:
Caralho! E um cadeirante? Esse eu receio
que seja a maior victima do crasso
municipe que bullying faz, devasso,
às custas do “alleijado” que a ser veiu.
Si esbarra elle com postes, um abbraço!
Com rampas e caçambas elle implora
a fim de não cruzar... Ah, como adora
rir delle a molecada do pedaço!
Quem sae à rua encontra, a cada passo,
um caso a mais que o delle corrobora.
Si for attravessar, faça o que eu faço:
não ponha da calçada o pé p’ra fora.
Bem antes olhe: pelo largo espaço,
não vem carro nenhum naquella hora.
Mas, quando me decido, aquelle escasso
e calmo movimento ja peora.
Do nada, surge carro attraz de carro,
em fila accelerada! Eu, solitario
que estou, como pedestre, então esbarro,
na beira da calçada, em outro otario.
Tambem elle deixou de attravessar
no poncto em que parei, qual visionario,
emquanto a pista expressa era o logar
mais hermo e o mais tranquillo itinerario.
A fila de automoveis não tem fim,
vem desde a Marginal, quasi parada.
O cego, caminhando na calçada,
respira a fumaceira: “Orra! Ai de mim!”
Vae, lento, bengalando. Eu tambem vim
por este mau caminho. A baforada
dum grosso excappamento, liberada
alguns metros à frente, foi ruim:
Fumaça que, inhalada, causa tosse
convulsa, fez o cego se coçar.
Alguem “Não quero estar no seu logar!”
fallou, no caminhão, a rir. “Se coce!”
“Quem manda andar na rua? Deu azar!”,
comsigo o choffer pensa. Antes que engrosse
o clima e mais fumaça tome posse
do trafego, dá tregua o vento ao ar.
O verso edificante ou exemplar
não serve a quem fizer um serio estudo,
ou mesmo estudo comico, do agudo
ou chronico problema, a quem cegar.
O cego que se arrisca ao bengalar,
assim como qualquer um, surdomudo,
edoso ou “portador”, do mais classudo
ao reles, “cidadão” é, mas… sem par!