Postado em 01/06/1997
Na imaginação ardente e aterrorizada de João (desde muito menino foi assim), só tinha uma coisa pior e mais asquerosa do que a palavra varíola: era a palavra morféia. Pelo que elas representavam. Da última ele fugia léguas, feito o diabo da cruz, por causa do meio de um beijo molhado e pegajento ou de uma mordida.
A mitologia sombria que se criara em Duas Pontes em torno dos morféticos, e eles mesmos colaboravam nesse trabalho, era de apavorar qualquer um. Por exemplo, tinham a convicção e a vã esperança de que, se passassem a moléstia para o número cabalístico de sete pessoas, ficariam curados. Ninguém se aproximava deles, das crianças nem é bom falar. Pelo terror noturno, mesmo quando de dia.
Nas lojas e armazéns, quando os infelizes vinham às compras, deles só aceitavam moedas, jogadas numa lata vazia pregada num cabo comprido de vasculho, que lhes estendiam do passeio, a uma distância proporcional ao terror de cada um.
Nem em pensamento podiam entrar, a entrada lhes era vedada por uma lei tácita, mas que nem por ser assim deixava de ser obedecida cegamente. De cima dos seus cavalos (tão magros e esmolambados quanto os donos, com as ossadas visíveis, salientes por debaixo do pêlo) gritavam, sem ver, os nomes das mercadorias de que careciam. Depois, quando eles se afastavam, um empregado jogava nas latas cheias de moedas álcool e tocava fogo. As moedas se justificavam: quem era louco de pegar uma nota deles? Tal o medo que se tinha do bacilo da lepra.
Quando era sábado, dia convencionado para esmola, das janelas altas das casas procuravam acertar a lata que os morféticos apresentavam, como se fosse num jogo de malha. Era um divertimento muito bom, alguns maldosos achavam: os impiedosos que certamente não temiam o dia do juízo e o fogo eterno do inferno, era o que mais dizia vovó Naninha, sempre muito religiosa, senão mesmo rezadeira.
O lazareto fora obra da administração do coronel Be P. Lima, quando ele ocupou pela primeira vez a presidência da Câmara Municipal, e, portanto, seu agente executivo. Ao contrário do que se esperava, em virtude do seu jeito meio irresponsável e irreverente, boêmio e folgazão, o coronel deixou bom nome de administrador zeloso, rigoroso e previdente. Era uma reivindicação antiga do município de Duas Pontes, devido ao grande número de variolosos e ao medo que infundiam na cidade.
O Conjunto São Lázaro era um grupo de pequenas casas, verdadeiras casinholas onde se recolhiam os doentes de varíola, verdadeira peste que assolava periodicamente em especial a população miserável da cidade. Eram construções pequenas e modestas, mas de bom aspecto e higiênicas. Antes da benemérita administração os variolosos infundiam um terror pânico na cidade, a doença enfraquecia o comércio de secos e molhados, as portas se fechavam, de tal maneira apavoravam os infelizes bexiguentos, que ficariam para sempre assinalados na cara. A simples menção de notícia da peste, nas pontas das ruas se queimava bosta de vaca e creolina em cacos de telha. De primeiro, antes do lazareto, era um espetáculo sobre o macabro a ida dos doentes à noite para o mato, onde as carnes apodreciam quase no abandono sobre folhas de bananeiras.
Depois da passagem do coronel Be. P. Lima pela chefia do município criou-se um corpo de enfermeiros imunizados, que furavam (só de pensar João tinha asco) as pústulas com espinho de árvore e lavavam as feridas com cachaça e cânfora. Os bexiguentos eram cercados por uma faixa de isolamento, admiração e repugnância.
Foi ainda sob o mando do coronel que se providenciou grande quantidade de linfa para a inoculação dos possíveis doentes. Apesar da sua fama de bandalho, o coronel passou a ser chamado de santo, sobretudo pela arraia miúda, a que mais sofria, os ricos e os remediados sempre se arranjam.
Sujeito a constantes fobias e terrores noturnos, João se horrorizava, os olhos estatelados diante das narrativas da gente miúda da cozinha de vovó Naninha. A preta Milurde, apesar da sua bondade gorda, era quem mais atemorizava o infeliz menino. Tudo culpa de João, sá Milurde não fazia nada de propósito, tão boa era ela. O piá é que era achacado por constantes terrores noturnos. Na sua curiosidade mórbida o menino um dia perguntou a sá Milurde se em caso de bexiga se proibia também torresmo. Ela deu uma gostosa gargalhada, disse para ele não ser bobo não, só toicinho é que é proibido comer. Porque João era tarado por torresmo sequinho e pele de porco torrada.
Além de todos esses temores, João era considerado um menino doente. Tinha horríveis dores de cabeça e uma insônia rebelde, pouco comum em meninos da sua idade.
Foi assim que um dia sá Milurde apareceu com a maior novidade. O velho Zé Cabrito, um tipo amulatado que tinha barbicha pontuda, um tanto rala e amarelecida na ponta (daí o apelido, pela parecença com bode), cujo vero nome era José Balsemão, muito doente, vivia trancado noite e dia num quarto escuro, só de noite, não se sabia por que, acendiam uma lamparina, talvez para que sua cara não fosse vista pelos visitantes - dera para fazer cura de inumeráveis doenças com sua simples bênção.
Sem ouvir ninguém, sem nem mesmo pedir permissão à vovó Naninha (com certeza por temer a negativa da velha), decidiu por conta própria levar João para receber a bênção de Zé Cabrito. Ela prometeu a João, a princípio atemorizado, que ele ficaria livre de suas terríveis dores, noites maldormidas e outras mazelas. Tinha a certeza antecipada da cura; basta muita unção, não ser São Tomé duvidoso, disse ela.
A casa de Zé Cabrito ficava numa rua para as bandas da Santa Casa de Misericórdia. Para lá foram os dois, sá Milurde e João. Na sala um monte de gente ansiosa na espera. Sá Milurde alegou não se sabe que direito de precedência do menino, capaz de que por ser gente da alta, neto de seu Tomé.
A porta da sala dava logo para o quarto escuro de José Balsemão. Os dois entraram, sá Milurde puxando João pela mão. Dentro reinava, além da escuridão, um cheiro enauseante de gente suja e remédio.
Sá Milurde foi a primeira a ficar apavorada, arrependia-se de ter trazido João, ele podia bater a língua nos dentes, e aí ela estaria perdida, vovó Naninha não teria complacência pela falta, ela seria posta na rua. Boca presa, ciciou ela no ouvido de João. Não vai contar nada pra ninguém não que você esteve aqui.
O cheiro nauseabundo incomodou-a tanto que ela abaixou mais a boca para o ouvido do menino e disse, apavorada, quando ouviu a voz rouca de Zé Cabrito, falando se aproxime, o menino (como ele sabia? Alguém deve ter dito para ele da importância de João...), vamos embora, isto aqui está me cheirando a lepra.
Autran Dourado é escritor, autor de Confissões de Narciso, entre outros livros