Postado em 29/12/2017
Não há necessidade de um tablet, boneca ou carrinho para que a diversão tome conta. O fato de simplesmente estar num lugar onde é possível a interação com outras crianças e adultos, como um parque ou praça, já estimula a imaginação de meninos e meninas que, em pouco tempo, criam jogos e brincadeiras. Mas será que o direito de brincar, assegurado pela Constituição Brasileira e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), está sendo exercido? A artista e educadora Vera Campaner reforça a importância desse momento de lazer e, também, de desenvolvimento. “Em todo o mundo, especialistas da área infantil defendem a ideia de que o brincar livre é fundamental no aprendizado da criança e que reflete profundamente na vida adulta.” Para isso, a opção por brinquedos industrializados deve ser reavaliada, segundo a pedagoga e especialista em educação infantil Raquel Franzim, do Instituto Alana. “Menos brinquedo não é sinal de desigualdade de condições de desenvolvimento. Impacto negativo no desenvolvimento é ter menos possibilidade de interagir com os pais, com outras crianças e com a comunidade a qual se pertence.” Sendo assim, o que é a brincadeira sem brinquedo e que benefícios ela é capaz de gerar?
Vera Campaner
Muitos pais, na atualidade, têm se empenhado em proporcionar a seus filhos o acesso à educação formal e a atividades extracurriculares, acreditando que isso seja o suficiente para a formação da prole. No entanto, quando olhamos para a geração que nasceu na era dos tablets, smartphones e internet, constatamos que o brincar livre, e em família, está limitado ou quase suprimido do cotidiano das crianças, comprometendo, assim, o pleno desenvolvimento delas.
De fato, nas grandes cidades, parte desse comportamento se deve à falta de espaços destinados à criança dentro de casa ou em espaços públicos. E mais ainda: da pouca disponibilidade de tempo de convivência dos pais para com seus filhos. O brincar livre é muito pouco explorado pelas famílias e, no entanto, é um facilitador para a interação da criança em seu meio. Um momento para os pais estreitarem vínculos sendo participativos na vida dos filhos.
Em todo o mundo, especialistas da área infantil defendem a ideia de que o brincar livre é fundamental no aprendizado da criança e que reflete profundamente na vida adulta. A partir destas reflexões, eles chamam a atenção para que os pais criem um tempo e um espaço definido para que a criança possa brincar livremente e, de preferência, em sua companhia durante a brincadeira.
Diante da atual cultura de muitos brinquedos e poucas brincadeiras, esses especialistas discutem a importância do brincar sem brinquedo, do brincar lúdico, onde o estímulo à sensibilidade e à imaginação constroem valores capazes de transformar a vida. Mas o que é o brincar livremente?
Na brincadeira livre tudo é possível e a imaginação da criança é seu maior combustível. Um pedaço de pano pode se transformar em uma capa voadora de super-herói. É um canal para ela representar o que vê em seu interior. A partir da perspectiva da brincadeira do “faz de conta”, a criança reinventa a própria realidade, vivenciando diferentes papéis e assim estabelece ligações sobre quem é e o que pode vir a ser.
Sem dúvida, o lúdico é a vivência em que muitas situações do cotidiano da criança são reelaboradas, possibilitando a interpretação do real de acordo com seu desejo. Essas ações são fundamentais para a atividade criadora da criança. Brincando, meninos e meninas aumentam sua independência, estimulam a sensibilidade visual e auditiva, valorizam a cultura popular, exercitam sua criatividade, socializam suas emoções e a necessidade de conhecerem e reinventarem. Dessa maneira, constroem o próprio conhecimento.
E como estimular o interesse da criança para a brincadeira sem brinquedos? Os pais podem, por exemplo, incentivar a curiosidade dos filhos. O simples olhar para um pequeno inseto sobre uma planta, ou a observação do formato das nuvens, pode ser um estímulo para criar uma brincadeira particular entre familiares. Valorizar aquilo que a criança faz também é um estímulo.
Quando, por exemplo, a criança faz um desenho a sua maneira, ela deve ser encorajada a explorar ainda mais sua criação. Uma caça ao tesouro criada dentro de casa, ou num jardim, também pode estimulá-la a enfrentar novos desafios. Cantar uma canção juntos, colher pedrinhas em um parque, fazer um castelo de areia são brincadeiras que aguçam na criança o ato de fazer.
Diferentes interesses facilitam a criação de brincadeiras que exploram o desconhecido e agregam valor àquilo que a criança faz. No incentivo à imaginação, uma cabana de lençol ao redor do sofá transforma a sala em uma floresta onde um macaco solta um grito.
Aos pais, faz-se necessário reaprender a brincar com seus filhos, presenciando, verdadeiramente, a brincadeira, o que reforça a cumplicidade e a afetividade entre ambos. Isso se reflete na maneira como os filhos passam a admirar os pais e a confiar neles. Um movimento recente proposto pelo escritor Carl Honoré – slowparenting (pais sem pressa, em livre tradução) – vem ganhando apoio no Brasil como uma filosofia contemporânea na educação das crianças.
Para impactar positivamente a vida dos filhos, os adeptos desse movimento valorizam a relação sem a pressa de inseri-los no mundo competitivo e sem acelerar seu desenvolvimento.
Brincadeiras antigas x brincadeiras atuais
Comparar brincadeiras antigas com as atuais tem provocado uma grande discussão. No passado, os brinquedos quase não tinham tecnologia e o brincar incluía se divertir com o que estivesse disponível. Brincar com panelas, colheres, tampas e outros objetos da casa fazia parte do universo das brincadeiras. Com o passar dos anos, e em grande parte devido à urbanização, alguns costumes se perderam e as brincadeiras se modificaram.
Nesse sentido, a memória como fonte de resgate de brincadeiras tradicionais pode ser um incentivo para as crianças experimentarem divertimentos que fizeram parte de outras gerações. Quando os pais compartilham a lembrança de suas brincadeiras preferidas com seus filhos, isso pode ser prazeroso tanto para os adultos quanto para as crianças.
Não existe uma resposta pronta para conduzir a criança em desenvolvimento. Porém, reflexões como estas ajudam os pais a entender melhor a si mesmos e auxiliar seus filhos no aprendizado da vida como um todo. No final, colher experiências do brincar livre garante a meninos e meninas um desenvolvimento mais pleno e repleto de sonhos a serem realizados.
Vera Campaner é artista e educadora nas
áreas socioambiental e artes tecnológicas, está à
frente do Eco Arte Ateliê, atua como orientadora
em oficinas com enfoque em técnicas
artesanais que incentivam a valorização
social e o aprendizado socioeducativo.
Raquel Franzim
Crianças são muito ativas e curiosas. Inventam brincadeiras o tempo todo. Brincar é uma linguagem, expressão do ser humano que encontra na infância um período propício para pulsar. Ao brincar, a criança não pensa se sua ação terá alguma finalidade ou se aprenderá algo. Está aí o valor: quanto mais livre, e quando o brincar não tem nenhuma obrigação de aprendizado, mais criativo se é.
A brincadeira se dá no espaço e no tempo. Por isso, é importante que as famílias garantam tempo em agendas saturadas e espaços amplos, ao ar livre, onde a criança possa explorar e se mover com liberdade. De preferência, espaços como parques e praças, onde há interação com o outro.
Aos adultos cabe o papel de confiar na criatividade de filhos e alunos. Apostar na criatividade das crianças é aprender a não interferir, a olhar e a observar. É preciso aprender com elas as variadas formas de brincar, de solucionar os desafios do corpo, dos materiais, dos espaços, das regras e do conviver com os outros.
Se espaços comunitários oportunizam a conexão com o outro, o brincar livre também se nutre da memória de brincadeiras passadas de geração em geração. E algumas delas só ocorrem ao ar livre e na interação: pega-pega, esconde-esconde, polícia e ladrão, pique-bandeira, queimada, pular corda. O mais interessante das brincadeiras tradicionais é que são acessíveis, inclusivas (para diferentes idades e gerações) e adaptáveis (praticadas com pouco ou nenhum recurso). Isso revela que as crianças não precisam o tempo todo de brinquedos: elas têm potencial para criar as próprias brincadeiras.
O brincar livre, fora de espaços fechados, beneficia tanto a saúde física quanto a mental e social de crianças, jovens e adultos. Há evidências científicas que apontam para sensação de bem-estar, melhora dos hábitos alimentares, menor propensão à obesidade, fortalecimento das relações sociais e fomento ao aprendizado. Há ainda uma aprendizagem essencial: cultivar e amar a natureza que as cerca. As crianças criam laços afetivos com lugares, pessoas e comunidades. Dessa forma, constroem a sensação de pertencimento a uma comunidade.
Brincar é um direito [assegurado pela Constituição Brasileira e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente] que deve estar garantido na rotina das crianças e de jovens. A casa, a escola e os centros de convivência têm uma responsabilidade muito grande em proporcionar materiais de diferentes qualidades sensoriais, aproveitando a rica flora e natureza ao redor. Como explica a educadora Luiza Lameirão em seu livro Criança Brincando! Quem A Educa? (Ed. João de Barro, 2010): “A grandeza da imaginação depende da gama diferenciada de vida perceptiva que ela [a criança] desenvolveu, concomitante a sua capacidade de movimento”.
Muitas brincadeiras são criadas pelas crianças com a força da imaginação e com recursos simples e inusitados que as cercam. Como materiais e objetos do dia a dia (panos, panelas, vassouras, travesseiros etc.) e elementos da natureza. Por isso, crianças construtoras de brinquedos também representam outro argumento de que é possível brincar sem brinquedos.
O projeto de pesquisa, intercâmbio e difusão da cultura infantil Território do Brincar, idealizado por David Reeks e Renata Meirelles, e co-realizado pelo Instituto Alana, testemunhou algo que muitos acreditam não acontecer mais: crianças construindo seus próprios carrinhos, barcos, casinhas, bonecas. Isso não é coisa do passado. Mas para que isso aconteça, é necessário dar tempo à criação.
A aceleração e a fragmentação do tempo são grandes desafios assim como a cultura da limpeza e da organização. Ansiosos por ensinar as crianças a arrumar “a bagunça”, desmancham-se pesquisas e construções que as crianças acabaram de iniciar. Ou seja, é preciso aceitar outra vivência do tempo e um pouco de caos e desordem.
Menos é mais
Não se trata de achar que brinquedos prontos podem atrapalhar a imaginação. A criança sempre encontra uma forma de interagir com o brinquedo que tem à frente, mesmo quando ele busca representar a realidade – como brinquedos que falam e andam. Nos anos em que fui professora, observei as crianças dando outros usos e soluções para brinquedos que vinham prontos.
Cortar o cabelo das bonecas; desmontar carros para, em seguida, reconstruí-los, transformar móveis de casinha em engenhocas. Brinquedos industrializados representam a crença dos adultos de que as crianças não são capazes de imaginar, de criar e de reinventar por conta própria. Bombardeados pela publicidade, sem perceber, relacionamos a felicidade de crianças e jovens com coisas que compramos para eles.
A ideia de que é preciso brinquedos para brincar não é fruto espontâneo do pensamento dos adultos. Quem é pai, mãe ou educador sabe da influência da publicidade nas escolhas e brincadeiras das crianças e como ela alimenta o pensamento de que é preciso consumir brinquedos. Em agosto de 2016, uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, encomendada pela Aliança de Promoção da Saúde (ACT), indicou que 60% dos brasileiros são contra a publicidade infantil.
Menos brinquedo não é sinal de desigualdade de condições de desenvolvimento. Impacto negativo no desenvolvimento é ter menos possibilidade de interagir com os pais, com outras crianças e com a comunidade à qual se pertence. Precisamos aprender a olhar para a experiência criativa da criança. Só assim, iremos entender que menos é mais na educação de crianças e jovens. O brincar sem brinquedos industrializados possibilita a invenção de seus próprios brinquedos ou ainda a construção de novos. Quer força criativa maior do que essa?
Raquel Franzim é pedagoga, especialista em educação infantil e assessora pedagógica no Instituto Alana (organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, voltada para trabalhos com foco na infância). Ela ainda coordena, na Ashoka (organização mundial, sem fins lucrativos, pioneira no campo da inovação social e do trabalho), o programa Escolas Transformadoras no Brasil.
Imagens da exposição, Mais de Mil Brinquedos para a Criança Brasileia, que esteve no Sesc Pompeia em 2013