Postado em 28/11/2017
Por mais de 300 anos, Portugal se utilizou da mão de obra escrava para explorar sua colônia nas Américas e consolidar seu território ultramarino. Essa empreitada fez com que o Brasil se tornasse o país que mais recebeu escravos africanos no mundo. Milhares de negros foram trazidos em condições desumanas, acorrentados nos porões de navios. Os que sobreviviam à viagem eram vendidos àqueles que ofereciam melhor preço. Os que demonstrassem mais vigor e saúde tinham destino certo nas lavouras.
A rotina nas plantações de cana-de-açúcar e café era exaustiva, e chegava a 16 horas ininterruptas de trabalho, para atender uma demanda de produção que crescia em larga escala. Diante dos maus tratos, a expectativa de vida de um escravo era muito curta, aproximadamente 10 anos. “No Brasil havia uma forma de subjugação extremamente agressiva e exploratória, que acabava fisicamente com o negro, diferente da escravidão na África, menos danosa”, explica Álvaro Pereira do Nascimento, historiador da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ.
Entretanto, a violência legitimada pelo Império começou a enfrentar resistência. Expostos a toda sorte de humilhação, muitos dos escravos arriscaram suas vidas em fuga. Nesse período, surgiram os quilombos, locais de refúgio na mata, fora do alcance dos senhores, onde os fugitivos encontravam uma maneira de viver em liberdade, enquanto não fossem descobertos.
Com o passar dos anos, a cultura escravagista perdeu forças, principalmente na Europa, com a revolução industrial e a modernização das cidades. O Brasil resistiu por anos às pressões dos movimentos abolicionistas internos e à intimidação do mercado externo. Foi o último país do mundo a abolir a escravatura, em 1888, com a Lei Áurea.
Embora tenha sido uma conquista, a abolição aconteceu sem planejamento e não se preocupou em inserir os ex-escravos na sociedade brasileira. Dessa maneira, a ordem econômica e social se manteve, com a elite branca prosperando e o negro à margem.
Cem anos após a “libertação”, as comunidades brasileiras quilombolas seguem lutando contra a opressão, pelo direito a igualdade e melhores condições de vida.
“Guerreiro da floresta”. Esse é o significado da palavra quilombo em banto, idioma de povos da África sul-equatorial, que originou diversas línguas africanas. Embrenhados nas florestas, os negros construíram comunidades que se tornaram símbolos da resistência à escravidão no Brasil. Os principais quilombos foram formados nos estados de Pernambuco, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Alagoas, por volta do século XVII.
A existência dos quilombos desafiava às autoridades. Senhores de engenho e governantes atacavam constantemente as comunidades, na esperança de destruir o sonho de liberdade negro, resgatar seus escravos e ocupar novos territórios.
O quilombo mais representativo da história foi o de Palmares, localizado na Serra da Barriga, em Alagoas. Era uma espécie de confederação que agregava várias comunidades da região e resistiu por quase 100 anos a investidas militares. Sucumbiu em 1694, com a morte de Zumbi, seu último líder. Ele preferiu guerrear a aceitar um acordo oferecido pelo governo de Pernambuco, que concederia liberdade apenas às pessoas nascidas em Palmares e permitiria o uso de terras localizadas ao norte de Alagoas.
Após a abolição dos escravos, houve uma mudança considerável na forma de ocupação das terras pelos negros no Brasil. As comunidades quilombolas se estabeleceram em territórios herdados, doados, oferecidos como pagamento ou comprados. Embora fixados nessas regiões por direito, os quilombos nunca estiveram a salvo dos interesses latifundiários e do descaso político.
Em 1988, a Constituição brasileira, através do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, reconheceu o direito à propriedade das terras quilombolas. Em 2003, após o decreto nº 4.887, os procedimentos para identificação, delimitação, reconhecimento e titulação dos territórios ocupados foram regulamentos em todo país. Esse mesmo decreto também transferiu para o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), a função de delimitar essas terras.
Contudo, desde 2012, tramita no Supremo Tribunal de Justiça, o julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade que questiona o decreto presidencial de 2003 e a forma de regulamentação fundiária das terras quilombolas. A terceira tentativa de julgamento, que aconteceu pela última vez no dia 9 de novembro de 2017, foi interrompida em função do pedido de uma nova análise do processo.
“O decreto de 2003 não deve ser derrubado. Vão colocar tantas condicionantes que a política de titularização será inviabilizada”, afirma Roberto de Almeida, antropólogo do INCRA. Segundo ele, é possível atender a demanda da população quilombola brasileira¿—¿hoje, na ordem de um milhão de pessoas, que ocupam uma parcela insignificante (entre 0,7% e 0,8%) do território nacional. “O racismo estrutural, fortemente presente em todas as instâncias do Estado, aliado à falta de recursos e de interesse político, contribuem para que esse processo não se conclua”, explica Roberto.
De acordo com dados registrados pela Fundação Cultural Palmares, até 2017, 3018 comunidades quilombolas solicitaram o processo de autoreconhecimento. Uma delas é a Kalunga, identificada como o maior quilombo do Brasil. Com 262 mil hectares de extensão demarcados pelo INCRA em 2017, seu território abrange os municípios de Cavalcanti, Teresina de Goiás e Monte Alegre, no estado de Goiás.
Os quilombolas sobrevivem da agricultura, da pesca, do artesanato e do turismo. Afastados dos grandes centros, os Kalungas constroem suas casas sobre chão batido, cobertas por telhados de palha. A falta de saneamento básico, de água encanada e de energia elétrica faz parte da rotina dos moradores. O transporte público é precário e as condições das estradas são péssimas, mas apesar das dificuldades, o acesso da comunidade à cidade já apresenta melhoras. “Hoje, nós vamos à escola e a postos de saúde, antes não havia como. Eu nasci de parteira, minha mãe não sabia o que era médico”, explica Izabel Francisco Maia, presidente da associação de guias do quilombo Kalunga¿—¿Engenho 2.
Os descendentes quilombolas ainda buscam seus direitos à educação, ao trabalho e a um tratamento digno como todos os cidadãos brasileiros. “Nós da comunidade Kalunga precisamos ser respeitados como iguais, preservar nossa cultura e meio ambiente”, comenta Izabel. “A discriminação que ainda sofremos é grande”, conclui.
O primeiro episódio da segunda temporada da série Habitar Habitat, dirigida por Paulo Markun e Sergio Roizenblit para o SescTV, traz o episódio "Quilombola", que apresenta o cotidiano dos descendentes dos escravos africanos e a sua luta para manterem vivas suas histórias e conquistarem o direito à terra de seus antepassados.
Assista abaixo ao episódio na íntegra: