Postado em 23/11/2017
Preciso falar. Mas falar sobre o quê? Eu não sei. Não vou falar de mim, pois não sei e não sou coisa pra se falar. Vou falar sobre o que me atravessa. E o que me atravessa é PRETO, esse espetáculo que acabo de assistir. Preciso falar de Grace, Nadja, Márcio, Cássia, Renata, Felipe e Rodrigo...de toda a companhia brasileira de teatro (sim, se escreve com letras minúsculas mesmo) e sua incessante busca pela construção de diálogos para a produção de um trabalho mutante como a nossa própria existência, que foi sendo montado a partir de experiências e a escuta atenta durante longos meses de pesquisa e gestação de ideias cujo parto se deu no Sesc Campo Limpo.
Falo desse atual momento que a gente vive (e que momento é esse?): desses tempos sombrios, em que a arte é mais uma vez contestada e subjugada pelos que não compreendem o valor desta para a construção de uma sociedade, num mundo dominado pela surdez - não a física, a intelectual - onde a importância de viver nas seguras bolhas cercadas de afirmações e discursos de ódio vazios e pré-fabricados, propagados a todo o momento, se sobressai ao diálogo e à simples compreensão. Palavras são abafadas pelas desenfreadas batidas das panelas nas mãos daqueles que não conseguem parar para compreender as subjetividades e individualidades latentes. Não conseguem ouvir os gritos, engasgados por séculos e carregados de dores marcadas por um triste passado ancestral, que saem dos corpos ávidos pelo sentir.
Sim. O Brasil é preto, embora muitos neguem. O espetáculo parte dessa afirmação para discutir a consciência, a noção e as perspectivas de racismo, levantando e revendo as questões que a sociedade já debate há muito tempo, buscando refundamentar as perspectivas da história (escavar quem contou aquela história), propondo assim uma reconfiguração da sociedade. Através de frases impactantes mas muito comuns no dia-a-dia "Como é ser você?", "Qual é a tua comunidade?", "Como é viver a sua imagem nesse mundinho?", "Você é livre?" o trabalho apresenta uma forma diferente de panfletar estes temas, com base no ouvir, no sentir e através da metáfora aplicada, motivar a convivência pacífica. Como o próprio Diretor Márcio Abreu disse "É a chance de construirmos algo novo."
RESISTIR E PROVOCAR
O teatro sempre foi o lugar de resistência. Através dele as verdades e as possibilidades de reação se ampliam. É preciso saber que toda ação tem uma reação, mas essa reação não precisa necessariamente ser truculenta. Essa é a proposta: reagir a todas essas questões atuais. Municiados pela qualidade técnica e a poética da violência, a companhia utiliza-se das diversas formas de expressão, reage artisticamente a este cenário atual, expandindo a experiência e as inquietações surgidas nas inúmeras tentativas de diálogo que estabeleceram ao longo do processo. Não se fala SOBRE um tema, mas as questões são levantadas de modo sutil, valorizando o verdadeiro objetivo da arte: impactar e fazer pensar.
O bairro do Campo Limpo, localizado na periferia da cidade de São Paulo, foi o local escolhido pela companhia para mais uma vez levantar provocações. "Não se trata de levar a arte para a periferia. A periferia não precisa disso! Existe muita arte por aqui. Talvez seja o contrário". Essas foram frases ditas pelo próprio Diretor do espetáculo Márcio Abreu. A provocação aqui parte para a própria produção, diante de questões da materialidade e as adaptações para se ocupar um espaço novo, reformular os espaços ( um teatro dentro de uma tenda), além de levantar inquietações sobre a necessidade de se ampliar as discussões sobre a fluidez da própria cidade e as formas de deslocamento. "Atravessar livremente os espaços", “forçar” as pessoas a atravessarem a cidade, desafiando também o referencial de distância."Até um dia em que os portões do mundo sejam portos de todo o mundo", citação dita por Leda Maria Martins durante um dos bate-papos ao final do ensaio aberto.
DERRUBAR OS MUROS E OUVIR
O espetáculo faz uso da metalinguagem trazendo muitas referências artísticas: O 'teatro dentro do teatro' é apresentado em cenas da peça dos anos 80 que tinha a própria Renata Sorrah no elenco; a atriz e iluminadora Nadja Naira aparece fazendo o seu próprio papel: a iluminação da peça. Nessa encenação, uma das tantas frases marcantes é dita rapidamente e até pode passar despercebida: a criada Marlene "não falava uma palavra, mas escutava. Dessas coisas inesquecíveis". Nesse mundo em que as pessoas que falam demais mesmo sem ter nada pra dizer obtém destaque, é preciso dar importância a quem sabe silenciar e ouvir.
Talvez seja necessário retornar ao príncipio de tudo: a reunião em círculo, olhando olho no olho; em volta do fogo, este que chama a atenção, aquece e aproxima. É sempre alguém que acende o fogo e portanto, é o sinal de que alguém está ali para ouvir. Em diversos momentos os atores buscavam respostas do público que duvidoso se perguntava: "é pra responder?”. Propõe-se mais uma vez a quebra dessa barreira hierárquica que existe entre atores, atrizes e plateia. O que a gente faz com as paredes? É preciso desconstruir esses grandes muros que estamos levantando pouco a pouco e que nos separa de nossa civilidade. Temos que criar espaços de diálogo, ampliar o som do outro e tentar minimamente sentir a dor e o prazer do outro. Quantos corpos ainda serão silenciados para que uma única voz possa ecoar?
É necessário reformular, inclusive o início do texto: Precisamos ouvir. Mas quem vai abrir mão pra dividir?
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