Postado em 31/10/2017
	
Ilustração: Marcos Garuti
SONETO PROFUNDO
	Nadei dez metros sob a correnteza,
	e me afoguei no ritmo do mundo.
	Levei no bolso um texto, na certeza
	de que ele voltaria mais profundo.
	Depois eu pretendi nova conquista
	a meu soneto ínfimo e pedestre:
	coloquei-o na mão de um alpinista,
	para ele assim subir ao Everest.
	Desejei-lhe uma longa eternidade,
	estendendo-se além de minha vida.
	A melhor solução foi empalhá-lo,
	colocá-lo na sala de visita.
	De lá ele me exibe, com descaso,
	O riso fundo de um soneto raso.
	
	SONETO AO MOLHO INGLÊS
	Para Cony, que deu a mim o verso 1
	Mãe, eu quero comer um bife à milanesa,
	é tudo o que lhe pede o filho mais ingrato,
	e ainda que delícias brilhem em meio à mesa
	eu nada além desejo dentro do meu prato.
	Um simples bife de patinho, ou chã alcatra,
	para este filho mal passado; eu pretendia
	passar a limpo o amor que sai pela culatra,
	e sem cessar me escapa nesta casa fria.
	Agora é tarde, e nada abala a fortaleza
	da dura sala hereditária em que deponho
	minha esperança, misturada na tristeza
	de nunca ter sabido o que é o sabor de um sonho.
	Não, mãe, te afirmo então, na insônia da certeza:
	não quero um bife, quero o amor de sobremesa.
	
	RECEITA DE POEMA
	Um poema que desaparecesse
	à medida que fosse nascendo,
	e que dele nada então restasse
	senão o silêncio de estar não sendo.
	Que nele apenas ecoasse
	o som do vazio mais pleno.
	E depois que tudo matasse
	morresse do próprio veneno.
	
	LÍNGUA NEGRA, RIO 30 GRAUS
	Bem longe explode em preto
	a pele cósmica de uma estrela,
	aqui arde em silêncio
	a pele grossa de uma vela.
	Negra é a língua que se enreda
	para um salto sem saber o que a espera.
	Negra, negra língua,
	com seu gosto de esgoto e de quimera.
	Língua que se desfaz, liquefeita,
	na cachaça trôpega dos bares da favela.
	Língua que ao pó retorna, heroína
	celebrada na veia aberta das vielas.
	Passos que galopam para o abismo,
	expulsando a pontapés a primavera.
	Um fio de luz desmancha o frio.
	Anoitece no Rio de Janeiro.
	
	A GAVETA
	A gaveta está trancada,
	a chave levou Maria.
	Nela guardados os planos
	de quem já fui algum dia?
	Decerto aí também mora
	a linha da pescaria
	que mirou no meu futuro,
	mas errou a pontaria.
	Desconheço se ela abriga
	alguma mercadoria
	dispondo de mais valor
	que um pardal na ventania.
	Mas por que agora eu escuto
	numa quase litania
	as vozes que dela saem
	e se engrossam em gritaria?
	Chamo então um bom chaveiro
	da Europa, Olinda ou Bahia,
	para arrombar a gaveta,
	pois lá do fundo eu traria
	a chave de algum passado
	que aprisionado me espia.
	Chega um e chegam dez
	chaveiros em romaria.
	A gaveta a todos eles,
	um por um, derrotaria.
	São bem fracos contra a força
	E a resistência bravia
	Que a tal fechadura impõe
	frente a tal cavalaria.
	Na madrugada, cansado
	pela perdida porfia,
	percebo voando no ar
	uma dúbia melodia.
	Provém daquela gaveta:
	ela afinal me induzia
	a entrar sem maior esforço,
	já que a mim se entregaria,
	e dentro de si guardava
	peça de imensa valia;
	eu agora nem de chave
	nem de nada carecia.
	Conseguiu me convencer
	Com voz bastante macia,
	e, pronto para apossar-me
	da mais pura pedraria,
	abri-a com a mão amante
	de quem pisa em joalheria.
	O tesouro acumulado
	era a gaveta vazia.
	Dois insetos passeavam
	sobre a superfície fria.
Antônio Carlos Secchin é poeta, ensaísta, crítico literário e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Autor de obras como Ária de Estação (1973), Todos os Ventos (2002) e, a mais recente, Desdizer (2017), que reúne a produção do escritor desde a década de 1970.