Postado em 31/10/2017
A cada passo, um clique. Assim caminha o turista que parece mais interessado em fotografar do que vivenciar um novo lugar. Para o diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), Rubens Fernandes Júnior, “disponibilizar uma fotografia nas redes sociais é imperativo para o viajante informar que está lá, naquele lugar, compartilhando sua experiência, criando uma imagem para o seu seguidor preencher com sua imaginação e virar cúmplice virtual da sua viagem”. Quem também reflete sobre esse comportamento é o fotógrafo e autor de guias de viagens João Correia Filho. “Chamou-me a atenção um rapaz de 30 e poucos anos que apontava sua lente a tudo que via e praticamente não tirava os olhos do visor do equipamento. (...) Ele havia feito três vezes mais fotografias que eu, que estava viajando exclusivamente para registrar a viagem”, recorda. Esses e outros aspectos da fotografia de viagem são analisados por Fernandes Júnior e Correia Filho para além de câmeras fotográficas e smartphones.
Rubens Fernandes JÚnior
Para o bem e para o mal, fotografar e viajar são possibilidades de deslocamentos viabilizadas pela modernidade. A viagem nos leva a um destino predeterminado e propicia experiências únicas se tivermos a disponibilidade de nos envolver pelas questões sociais e culturais do lugar que escolhemos para conhecer. Por outro lado, fotografia é um exercício de liberdade que abre uma cadeia de sensações e singularidades que ampliam, significativamente, nossa capacidade perceptiva, moldando nossa forma de ver o mundo.
Apesar dos relatos dos viajantes, das plantas cartográficas, dos desenhos e das aquarelas, das transformações urbanas e paisagísticas descritas pelos jornais e pela literatura, é a fotografia que oferece maior certificado de presença e reconhecimento imediato da existência de um mundo objetivo. Enquanto a viagem é uma aventura razoavelmente controlada, a fotografia da viagem é um documento essencial para a reconstrução imaginária dos espaços visitados, da memória topográfica e sua contextualização histórica.
Passar os olhos num velho álbum de fotografias de viagem torna-se uma experiência instigante para quem gosta de recuperar os momentos passados. Em cada fotografia existem lembranças que são capazes de despertar a incrível sensação de estar presente: um passeio silencioso e cúmplice; uma narrativa visual da viagem realizada num passado qualquer que estimula nossa imaginação. A fotografia é capaz de fixar e mostrar com alguma precisão (dependendo do fotógrafo) uma riqueza de detalhes que escaparam do olhar do viajante, quase sempre ávido e apressado.
FILTRO DO OLHAR
O viajante contemporâneo percorre antecipadamente os territórios que já foram decodificados virtualmente. As imagens do Google Earth disseminadas indiscriminadamente mundo afora retiraram o prazer que antes existia nos deslocamentos. Mesmo assim, a viagem continua desafiadora, pois, diante de territórios pouco conhecidos, somos atraídos tanto pelo lugar comum e midiático quanto pelos espaços carregados de estranhamentos e surpresas. E a fotografia irá filtrar e classificar tudo aquilo que é memorável na viagem e que escapa naturalmente à visão imediata.
Por outro lado, torna-se necessário um olhar retrospectivo para melhor entendermos o que realmente aconteceu com a fotografia após sua inserção definitiva no cotidiano doméstico. Foi em 1888 que George Eastman (1854-1932), da Kodak, colocou em circulação uma câmera de operação simples e criou seu slogan máximo: You press the button, we do the rest (Você aperta o botão, nós fazemos o resto).
Isso significou um estímulo sem precedentes, não apenas na produção de imagens, mas, acima de tudo, concretizou o desejo de milhares de pessoas de adquirir e operar uma câmera. Em poucos anos, a figura do viajante-fotógrafo estava presente em todo o mundo. E a cada viagem, rolos e rolos de filmes registravam os lugares e os costumes, as paisagens e os monumentos, as travessuras das crianças e os momentos de intimidade.
A explosão do consumo fotográfico, nas primeiras décadas do século 20, veio acompanhada de outras transformações que aconteceram simultaneamente em diversas áreas. Entre elas, o desenvolvimento dos meios de transportes (que permitiu o acesso da classe média às viagens nacionais e internacionais, deixando de ser privilégio de poucos); a ampliação receptiva do cinema, do rádio, das revistas ilustradas e dos cartões-postais. Essas novidades tecnológicas alteraram profundamente a percepção humana e aceleraram as relações sociais. Foi o início daquilo que marcou o século 20 e se convencionou chamar de “Era da civilização das imagens”.
FOTOGRAFAMOS COM MUITO MAIS FREQUÊNCIA PORQUE
QUEREMOS “SEGURAR” OS MOMENTOS DE ALEGRIA, PRAZER E FELICIDADE
O cartão-postal se transformou numa peça fundamental de qualquer viagem. Com o aumento do turismo e da fotografia, uma intensa produção de imagens se deu principalmente entre 1900 e 1925, considerada a “l’age d’or de la carte postale” (a idade de ouro do cartão-postal). Além de produzir suas próprias fotografias, o fotógrafo viajante amador também era o grande consumidor de imagens impressas que circulavam abertas e livremente pelas mais diferentes mãos até chegar ao seu destino.
A fotografia de viagem torna-se peça fundamental para contar para o futuro como era viver naquele exato momento do ato fotográfico. E, mesmo hoje, fotografamos com muito mais frequência porque queremos “segurar” os momentos de alegria, prazer e felicidade. Roland Barthes (1915-1980), no livro Câmara Clara, diz que “aquilo que a fotografia reproduz até o infinito só aconteceu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá se repetir existencialmente”.
Se antes ficavam confinadas num álbum, hoje, de modo geral, as fotografias de viagem adquirem uma visibilidade inimaginável pelas redes sociais. Disponibilizar uma fotografia nas redes sociais é imperativo para o viajante informar que está lá, compartilhando sua experiência, criando uma imagem para o seu seguidor preencher, com sua imaginação, e virar cúmplice virtual da viagem. Mas não podemos nos esquecer de que essa relação entre viagem e fotografia tem uma história rica, de puro êxtase, que registrou o mundo em movimento.
Rubens Fernandes Júnior, pesquisador, curador de fotografia, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).
João Correia Filho
No início de 2013, embarquei em uma série de viagens. Tinha a missão de registrá-las, mas sem me preocupar com os lugares em si, com paisagens e locais exóticos, registrando apenas a forma como os integrantes de cada roteiro se relacionavam com o ato de viajar. Minhas imagens fariam parte de uma exposição fotográfica intitulada Revisitada, que aconteceria no Sesc Bauru, a 330 quilômetros da capital, em maio daquele ano. E assim foi. Em uma dessas viagens, fiz cerca de 600 imagens durante os cinco dias do roteiro – uma média de 120 cliques por dia. Algo que me pareceu razoável, embora hoje possa parecer pouca coisa para a maioria das pessoas.
No decorrer da empreitada, percebi que algumas pessoas fotografavam exaustivamente, quase que compulsivamente. Muitas vezes, antes mesmo de ouvir as informações dadas pelos guias, saíam em busca de registrar o que vissem pela frente, sem ao menos saber do que tratavam os cenários e contextos. Diante de construções seculares (estávamos na região das Missões Jesuíticas, no sul do continente), parecia haver pressa em guardar imagens – recordações em cartões de memória.
Em meio a esse comportamento, chamou-me a atenção um rapaz de 30 e poucos anos que apontava sua lente a tudo que via e praticamente não tirava os olhos do visor do equipamento. Havia uma gana tão grande em registrar tudo que não me contive. Ao final do passeio, curioso, perguntei a ele quantas imagens tinha feito durante os cinco dias em que estivemos juntos. A resposta foi assustadora: 1800! Ou seja: ele havia feito três vezes mais fotografias que eu, que estava viajando exclusivamente para registrar a viagem.
A cifra do garoto dava uma média de 360 cliques por dia, 15 cliques por hora, considerando as 24 horas que um dia tem. Se considerarmos que ele dormia durante oito horas, teríamos 16 horas e uma média de 22,5 fotos por hora, uma a cada três minutos... Tudo sem nenhuma anotação ou marcação que livrasse tantas imagens de um destino certo: o do esquecimento em uma pasta do computador.
Esses números me pareceram absurdos – considerando ainda que havia a hora do café da manhã, do almoço, do jantar, do descanso e dos traslados. Chamaram minha atenção e me levaram a refletir sobre por que e quanto devemos fotografar durante as viagens. Desde então, esse vem sendo um dos grandes questionamentos do meu trabalho como profissional: pontos de interrogação para um fotógrafo (sub)imerso num mundo de imagens, numa sociedade de cliques e likes.
CEGUEIRA DIGITAL
Algum tempo depois, passei a discutir em minhas oficinas e palestras textos de autores que tratam do assunto, como o filósofo suíço Alain de Botton, que, em seu livro A Arte de Viajar, aborda o tema de forma prática e clara: “Em vez de usar a fotografia como um suplemento para um modo de ver mais ativo e consciente, eles a usavam como uma alternativa, prestando menos atenção no mundo do que tinham prestado antes, com base na crença de que a fotografia automaticamente lhes garantisse sua fruição”.
Da mesma forma, a crítica de arte e ativista norte-americana Susan Sontag, no livro Sobre Fotografia, declarou: “Um modo de atestar a experiência, tirar fotos é também uma forma de recusá-la, ao limitar a experiência a uma busca do fotogênico, ao converter a experiência em uma imagem, um souvenir”. Obra lançada no Brasil em 1983, [Sobre Fotografia] traz uma série de reflexões que passaram a nortear meu caminho como fotógrafo ligado ao turismo.
AFINAL,
NUNCA FOTOGRAFAMOS TANTO,
E NUNCA OLHAMOS TÃO POUCO
De maneira relevante e precisa, Alain e Susan discutem a relação entre imagem e sociedade e nos levam a compreender as diferenças entre o olhar do viajante e a cegueira digital que nos espreita. Ajudam-nos a ver além do aparente e nos propõem a postura de desbravadores e não de meros consumidores de imagens, para os quais a fotografia é uma simples muleta do olhar, um símbolo do acúmulo de bens e de um viajar calcado no status social, no: “Eu estive lá e eis aqui a minha prova”.
Mais tarde, tais reflexões passaram a fazer parte de meu dia a dia de forma mais contundente, a ponto de propor aos amigos e alunos de fotografia uma série de alternativas a esse ato ao mesmo tempo tão importante e tão desgastado. Afinal, nunca fotografamos tanto, e nunca olhamos tão pouco.
E é com base em tudo isso que proponho a você, que chegou até aqui na leitura: na sua próxima viagem, não fotografe! Aproveite sua viagem para simplesmente contemplar, para guardá-la na memória que já vem embutida em você. Ou aproveite para ler um livro (pode ser inclusive um que se passe no lugar de sua viagem); para escrever; para registrar em texto os melhores momentos do roteiro; para desenhar (vai ver que nem precisa ter grandes dotes artísticos para esboçar o mundo); para caminhar (às vezes sem rumo); para conversar; para sentir cheiros, gostos...
Vivencie cada momento e viva sua viagem de forma integral, para muito além do clique. Sem cair na falsa necessidade de registrar tudo e todos. Sem se deixar levar pelo narcisismo dos selfies e dos paus de selfie. A partir de agora, tome isso como um desafio pessoal. Mesmo que seja em uma única viagem, mesmo que por um dia. Garanto que você vai perceber que, ao adotar o não fotografar, surgirão infinitas possibilidades de aprendizado sobre a imagem. Sobre as formas de apropriação de uma viagem, sobre o que o tornará um viajante mais atento, mais observador, mais ativo e, ironicamente, um melhor fotógrafo.
João Correia Filho é jornalista e desenvolve projetos sobre fotografia e literatura. Autor de guias turístico-literários, entre eles Lisboa em Pessoa (Ed. Leya), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti 2012 na categoria Turismo.