Postado em 01/11/2017
Foto: Leila Fugii
Formado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ricardo Henriques lecionou na Universidade Federal Fluminense (UFF) e foi pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). Ele também coordenou a criação do programa Bolsa Família em 2003, como secretário executivo do Ministério de Assistência e Promoção Social, e criou e dirigiu a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) no Ministério da Educação. Atualmente, é superintendente executivo do Instituto Unibanco. Nesta entrevista, o economista fala sobre a defasagem na educação básica e técnica e sobre a necessidade de uma base curricular afinada com o atual contexto socioeconômico e cultural do país. Para ter uma ideia da situação, somente no primeiro trimestre deste ano, o número de desempregados entre jovens de 18 a 24 anos chegou a mais de quatro milhões, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ao analisarmos a imagem otimista do país como foi descrita pelo escritor Stefan Zweig no livro Brasil – País do Futuro, na década de 1940, quão longe estamos deste cenário?
Essa imagem descrita por Zweig nunca se concretizou. Temos adiado essa promessa e, considerando nossas escolhas, pode ser que o futuro que estamos projetando coloque o Brasil de forma quase definitiva numa segunda liga das nações. Um campo estratégico dessas escolhas refere-se às políticas educacionais. Precisamos enfrentar uma reestruturação articulada, que encare sistematicamente nossos desafios da educação infantil à universidade. Ainda não alcançamos a universalização da educação infantil de 4 e 5 anos. Na outra ponta, somente 18% dos nossos adultos concluíram a universidade. Esse percentual deveria ser algo entre 25% e 35%. E, no cenário mundial de reorganização do trabalho e das formas de sociabilidade, é justamente com as juventudes que enxergamos a urgência dessa reestruturação adiada. Precisamos tirar nossas juventudes de uma situação de não lugar, de limbo, de negação de direitos.
Diante desse cenário, como os jovens foram impactados?
Hoje, uma das implicações mais dramáticas, do ponto de vista da crise econômica, é a condição de iniciação do jovem no mercado de trabalho. Estamos vendo crescer a taxa de desemprego entre os jovens. Ao negar a possibilidade de ingresso do jovem no mundo do trabalho, estamos criando um severo obstáculo para a construção de sua autonomia. Por outro lado, uma entrada tardia ou precarizada no mundo do trabalho gera impactos na inclusão social e econômica que se espalham por toda a vida adulta, implicando um círculo vicioso de exclusão. Por isso, além de construirmos políticas de inclusão no mundo do trabalho para os jovens, devemos também nos ocupar de como prepará-los, com um sistema educacional responsável e eficiente, para sua inclusão e permanência saudável e equilibrada na vida produtiva posterior. Temos um desafio grande quanto às condições de qualificação desses jovens no Ensino Médio regular, no Ensino Técnico e nas universidades.
Qual é a situação daqueles que concluem o Ensino Médio?
Na população de 15 a 17 anos, aproximadamente 15% não está matriculada na escola, sendo que 5% estão trabalhando e 10% nem trabalhando nem estudando [conhecida como geração nem nem]. Além disso, cerca de 30% está retida no Ensino Fundamental. Um dos motivos dessa disfunção é a cultura da reprovação: uma visão que se instalou na escola brasileira assumindo ares de uma técnica de aprendizagem, de mecanismo que garantiria a qualidade. Essa é uma visão equivocada que as pesquisas no campo da pedagogia já superaram, mas que ainda invade as práticas escolares. O que sabemos aponta em outra direção: quanto mais você reprova, maior a defasagem de idade/série dos alunos, o que leva à evasão. Com aqueles que concluem o Ensino Médio, após a superação de todos esses obstáculos, temos uma preocupação diferente: eles aprendem muito menos do que precisavam e do que teriam direito de aprender. Os níveis de aprendizagem são baixíssimos e se expressam também na própria percepção dos jovens sobre a pouca relevância das aprendizagens escolares com seus interesses e as necessidades da vida contemporânea.
Ou seja, mesmo aqueles que concluem o Ensino Médio saem em desvantagem?
É importante destacar que, apesar da gigantesca fragilidade do Ensino Médio, é evidente o aumento da escolaridade nas últimas duas décadas. Em particular, o ensino público é a principal fonte de mobilidade salarial da população pobre e com capacidade de explicar as reduções observadas na desigualdade. Dito isso, o abismo continua enorme e solicita mudanças intensas e estruturais. A promessa do sistema escolar pode ser traduzida na seguinte imagem: aguarde, fique aqui por uns 12 anos e sacrifique-se um pouco que ao final você terá a garantia de um futuro melhor. Mesmo bem intencionado e sustentado pelo esforço dedicado dos educadores, o sistema escolar não conseguiu cumprir essa promessa para a maioria da população. Em perspectiva histórica, essa promessa poderia ser sustentável ¿ao longo do século 20, com sua relativa estabilidade de narrativas e conformação às características vigentes do trabalho urbano e industrial. Mas hoje, o século 21 convoca uma escola que reconheça que as crianças e jovens não estão em preparação para a vida. Eles estão vivendo a vida, implicados e instalados numa sociedade desafiadora, plural, desigual e cheia de contradições. Em especial, os jovens estão atravessados por sua experiência social de descoberta dos processos sociais e de seus conflitos, estão engajados na construção de suas identidades, e a escola permanece surda a essa convocação do presente. Temos um Ensino Médio extremamente conteudista, totalmente vinculado à transmissão de técnicas, informações e conceitos, investindo em competências de baixa complexidade cognitiva e de orientação mais tradicional, enquanto a sociedade contemporânea pede outros saberes, habilidades e competências.
Isso se deve a uma base curricular engessada?
A estrutura do currículo do Ensino Médio que oferecemos aos jovens é muito engessada e arcaica, orientada exclusivamente por conteúdos que induzem à memorização e à decoreba, e empilha conhecimentos enciclopédicos sem atribuir a eles nenhum sentido. Precisamos de um currículo que reconheça que a apropriação de conhecimentos em forma de conteúdos serve ao desenvolvimento de capacidades, habilidades e competências para o exercício pleno da cidadania. Trata-se de construir, com cada jovem, um campo de ferramentas para a vida, tais como: capacidade de interpretar um texto; conseguir identificar nele visões distintas, interpretá-las, e tirar uma conclusão própria a respeito; além de desenvolver um senso crítico.
Quais seriam os aspectos mais importantes para uma proposta nacional de base curricular?
Temos uma proposta nacional de base curricular até o Ensino Fundamental, mas ainda não temos uma para o Ensino Médio. Uma base curricular relevante e consistente para o Ensino Médio deveria ter um núcleo comum e a possibilidade de escolher caminhos formativos singulares, o que aumentaria muito a probabilidade de aderência e comprometimento dos estudantes. Em particular, explicitando as expectativas de aprendizagem e o conjunto de capacidades que desejamos desenvolver com os nossos jovens. É importante lembrar que, por não conseguir apresentar ao jovem uma escola dinâmica, conectada com seus interesses e com suas experiências cotidianas, o Ensino Médio perde potência para conquistar o coração dos jovens. Além de reconhecer os condicionantes sociais, econômicos e culturais que impactam o que chamamos, por vezes de forma simplista, de “desinteresse do jovem por prosseguir no Ensino Médio”, podemos com a agenda da base curricular abrir caminhos para a produção de sentido no ato de estudar.
Há espaço para os jovens participarem dessa discussão?
Há urgência dessa participação. Os jovens têm ocupado a esfera pública para reivindicar esse direito de construir, juntos, a escola que desejam. Essa não é uma discussão estritamente técnica ou setorial. Ela precisa envolver todo mundo e ser colocada em questão por quem é beneficiário dela: os jovens. Não a partir de uma visão democratista de escuta que muitas vezes se contenta em acolher e juntar vozes dissonantes resultando em uma espécie de consenso insustentável em termos da definição de políticas públicas. Mas, ao contrário, uma escuta forte e sensível, que conceda espaço ao contraditório e entenda o que está em jogo do ponto de vista dos jovens, para que resulte em vínculo e engajamento. Uma educação de qualidade para todos, que é o slogan da Unesco, abre o campo dos direitos como um todo. Por isso, precisamos ter uma conversa como sociedade e nos questionar: que país estamos projetando e que nova educação é necessária para tal?
Por que não há uma política pública voltada para os jovens?
Temos muitos programas na esfera estadual, municipal e federal, mas nós não temos, objetivamente, uma política pública voltada para os jovens. Há um empilhamento de ações e não uma visão articulada para as várias juventudes. Isso é muito importante: os desafios de um jovem urbano numa megalópole são completamente diferentes dos desafios de um jovem que mora numa comunidade ribeirinha. Outra coisa: é preciso haver um repertório de políticas públicas no campo da educação, trabalho, esporte, cultura, entre outros. Porque as políticas públicas podem até ser consistentes setorialmente, mas, em geral, não têm aderência a uma realidade que é multidimensional e multifacetada.
Podemos dizer, então, que a capacidade do jovem de se adaptar ao mundo de trabalho contemporâneo está comprometida?
De fato, essa capacidade é muito baixa. Se você projetar esse cenário para os próximos 20 anos, a situação pode ser ainda mais dramática. Isso porque estamos vivendo a combinação de três dimensões: um histórico de desigualdade acentuada e estrutural; um sistema escolar massificado, dissociado da qualidade e ancorado em conteúdos e em poucas adaptações às competências solicitadas pelo mundo contemporâneo; além de uma defasagem em comparação a outras sociedades do mundo que estão avançando numa velocidade muito maior e sinalizando a importância de combinar competências cognitivas com sócioemocionais. Ao desenvolvimento do raciocínio estruturado e do pensamento crítico se alinham as competências do aprender a aprender, da cooperação, da comunicação, da resolução de problemas, entre outras.
Como rebater a ideia de que só há mercado de trabalho para o jovem que se forma na universidade?
Nesse caso, precisamos ter uma visão integrada da educação que vá do ensino infantil ao universitário passando pelo ensino técnico. Especificamente ao final da formação básica, o jovem deveria ter opções sólidas para a trajetória técnico profissionalizante e também para a universitária. O que acontece quando não há essas opções? Quem está fazendo o ensino técnico, tradicionalmente o politécnico, tem uma excelente plataforma de qualificação para a universidade. Mas deveria haver uma oferta significativa de ensino técnico para que vários jovens não necessariamente tivessem que seguir o caminho da universidade. Claro que precisamos de mais jovens nas universidades, mas a ideia é que haja outras boas trajetórias profissionalizantes. É aí que o mercado de trabalho vai se adaptar e passar a valorizar também o técnico. Em particular as empresas dos diversos setores deveriam se aproximar do mundo da educação e criar condições objetivas de usos das competências desenvolvidas na escola.
A extinção de profissões e ocupações, bem como a criação de novas, é um agravante?
Essas mudanças são uma das razões de por que é tão importante que se faça um câmbio estrutural na educação. Algumas profissões terão mais demanda, como aquelas relacionadas ao cuidado, à saúde. Provavelmente o número de professores também deve aumentar. Outras profissões vão surgir. Esse jovem que sai do ensino médio acumulando uma pilha de conteúdos fixos e monolíticos não vai se adaptar. Aprender a desenvolver o pensamento crítico, interagir com problemas complexos, simular situações, mediar conflitos... Tudo isso somado aos fundamentos de Química, Física, Matemática, História e outros âmbitos.
A precarização do mercado de trabalho vai direcionar a juventude ao empreendedorismo?
É preciso uma leitura criteriosa da lógica do empreendedorismo. Um empreendedorismo emancipador depende de condições do exercício da autonomia que só serão possíveis se nossos jovens tiverem o direito a uma formação básica. Temos pouca nitidez para antecipar os contornos do mundo do trabalho em duas décadas, mas muito do que conhecemos hoje vai se transformar. Nesse cenário, deve haver uma convocação para o empreendedorismo como alternativa para uma parcela maior de jovens do que aqueles que hoje fazem essa escolha. Entretanto, caso não sejamos capazes de garantir o que eles precisam saber para fazer essa escolha informada e com liberdade, estaremos, muito provavelmente, produzindo uma falsa percepção de emancipação.