Postado em 23/10/2017
Em 1937, Oswald de Andrade publica O Rei da Vela que, 30 anos depois, 1967, em plena ditadura, ganha os palcos do Teat(r)o Oficina, com José Calso Martinez Corrêa e Renato Borghi no elenco.
Para celebrar os 50 anos da encenação de Zé Celso, além de reestrear o espetáculo - desta vez no Sesc Pinheiros - o elenco entrevistou o Borghi, que dá vida ao protagonista Abelardo I em ambas as montagens.
Ricardo Bittencourt:: Renato, como lidar com os altos e baixos, tão frequentes na vida do autor, sem se desesperar?
Já houve alguma política pública eficiente para o Teatro nestes tantos anos de sua trajetória nos palcos brasileiros?
Renato Borghi: Ricardo, só uma vocação verdadeira e inevitável resiste a essa montanha russa. Não me lembro de nenhuma política pública de apoio às artes cênicas realmente eficiente. Durante muitos anos, por incrível que pareça, nossa garantia de permanência e continuidade foi dada pela resposta do público. A bilheteria, antes do desmonte da Era Collor, foi nosso suporte e alimento diário.
Danielle Rosa: Você nasceu no mesmo ano de publicação do texto O Rei da Vela, atuou na montagem do Oficina em 67. Hoje, depois de atuar em inúmeros projetos, desde Chá e simpatia, passando por Incubadeira, Pequenos Burgueses, Galileu Galilei, Na Selva das cidades e tantas produções, qual a importância de fazer O Rei da Vela em 2017 e reestrear como Abelardo I?
Renato Borghi: Dani, infelizmente, O Rei da Vela atravessou os cinquenta anos seguintes a sua estreia mostrando-se cada vez mais vigente e revelador. Oswald sacou o DNA do Brasil.
Tulio Starling: Entre a estrutura interna das ações e as texturas de movimento sonoro, visual, vibrátil do corpo não deve haver muita separação... Certo? Quando essa estrutura interna de ações não se separa muito dessas texturas se usa geralmente o jargão de um papel “orgânico” no corpo de um ator. No processo de ensaio, quando o ator está se aproximando do papel, essas instâncias que defini não ficam imediatamente coesas. O texto e as ações físicas são substâncias que podem ir juntando tudo. Nada lineares, esses caminhos são sim um tanto caóticos... Portanto, em meio a esse caos criativo, o que fazer? Como fisgar o papel? Como ir escavando e ir descobrindo esses aquíferos de emoções de um personagem ao mesmo tempo de ir achando seu corpo, seus ritmos e falas? Em suma, como você lida com esse “tudo-isso-ao-mesmo-tempo-agora”? Tem uma ordem pra você?
Renato Borghi: Tulio, 1. Mergulhar de cabeça no texto. Compreender o que o autor quer comunicar e o que você mesmo deseja comunicar; 2. Um profundo sentimento de mundo; 3. Imaginar a personagem que você tem a sua frente em seus momentos mais prosaicos: comendo, dormindo, se olhando no espelho, dando bombons aos bagres, apaixonado, reprimido, recusado. Para criticar a personagem, é preciso integrá-lo; 4. Não cumprir a tarefa; 5. Relaxar a tensão muscular e permitir que a experiência viva que você procurou durante os ensaios possa percorrer seu corpo, navegar por suas veias e liberar o momento mais precioso: a Inspiração, nenhuma religião.
Regina França: qual o conselho que o Rei da Vela de 67 daria para o Rei da Vela de 2017 e para os atores que atuam em 2017?
Renato Borghi: Regina, o Rei da Vela de 67 aconselha o atual (2017) a antropofagiar este Brasil corrupto e injusto e devolvê-lo sobre o palco num vômito crítico e corrosivo.
Camila Mota: Renato, as peças e personagens te provocam manias/ritos que você incorpora na vida, durante o tempo em que vive essas entidades? Se sim, quais são as de agora? Alguma veio da primeira montagem?
Renato Borghi: Camila, é um rito de permanente. Dar passagem à personagem. Muita imaginação. Abelardo dorme e acorda comigo. Não consigo desligar. Ele volta a cada instante. Meu corpo vai assumindo o cafajestismo dos políticos e empresários de hoje. A observação do comportamento do brasileiro de classe média dos tempos atuais também é uma fonte preciosa de informação.
Roderick Himeros: Qual é a vacina antropofágica que você aplica nesta geração de atores, 50 anos depois da primeira encenação do Rei da Vela?
Renato Borghi: Roderick, representar é um dos maiores prazeres da raça humana. Sejam livres. Presentifiquem. E, principalmente, divirtam-se. A gente sofre, mas se diverte.
Zé Celso: Renato, como está sendo pra você nosso Reencontro Teat(r)al depois dos 44 anos?
Renato Borghi: Zé, você me desperta uma alucinante sede de representar. Somos obsessivos Nesta obsessão criativa, nos entendemos tão bem como há 44 anos.
Sylvia Prado: Você dia desses falou sobre o mergulho no texto e a descoberta de um novo subtexto pra um trecho específico. Queria que você falasse sobre a memória e a imaginação. Quais seus subtextos de Abelardo hoje?
Renato Borghi: Sylvia, os subtextos estão na vida presente, no que está acontecendo agora no Brasil, em como eu reajo às notícias e aos fatos novos, como o Renato/Abelardo reacionário experimenta as tendências direitistas de hoje, e como Renato/Abelardo que sonha com alguma revolução nutre, apesar de tudo, uma esperança que resiste mais que meu próprio corpo.
Joana Medeiros: O que é tão revolucionário quanto o teatro na história da tua vida? Existe algo, tanto quanto?
Renato Borghi: Joana, nada foi tão mobilizante quanto o Teatro na minha vida, “nenhuma militância a ela se compara”.