Postado em 07/10/2017
Por Vladimir Safatle
Tradução: Mariana Pimentel Fischer
English version
O crescimento de movimentos populistas nos anos recentes é um fenômeno que nos leva a colocar questões estruturais sobre os desafios de uma democracia liberal e suas formas institucionais. Podemos perguntar se as democracias liberais, práticas de governo que surgiram no segundo pós-guerra, enfrentam hoje a iminência de sua desintegração histórica como resultado de um ressentimento generalizado produzido por demandas sociais não realizadas. Podemos também indagar se o populismo é apenas uma regressão social temporária que precisa ser tratada como um tipo de patologia política própria de momentos de crise do capitalismo. Finalmente, podemos inquirir se o populismo possui, potencialmente, uma relação com a soberania popular e suas demandas, relação essa que teria sido bloqueada ou suprimida pelos poderes globais contemporâneos.
Independentemente da resposta que dermos a essas importantes questões, é certo que o crescimento dos populismos nos impele a enfrentar perguntas sobre “os fins” da democracia, com toda a ambiguidade própria a essa expressão. Fins da democracia, pois temos de lidar com indagações sobre seus propósitos e promessas, mas também fins da democracia porque podemos estar testemunhando o colapso iminente de uma forma política específica de governo. De certo modo, esses dois sentidos estão interconectados. Se deixarmos de perguntar hoje pelos propósitos da democracia, pelos destinos de suas promessas de emancipação social e pelos limites de sua forma liberal atual, corremos o risco de acelerar o fim do desejo popular de uma experiência política democrática, esse significante milenar.
Perguntar hoje sobre os fins da democracia nesse duplo sentido é uma maneira de manter a promessa de recuperação da importância de uma abordagem crítica tal como formulada pela primeira geração da Teoria Crítica. Esse colóquio/seminário pretende, então, discutir a validade atual desse modelo crítico e a necessidade de sua reatualização. Neste sentido, buscará abrir um espaço para um debate que não é apenas acadêmico, é também um exercício colaborativo de imaginação política.
Tendo em mente nossa situação contemporânea, lembremos como a primeira geração da Teoria Crítica, face ao crescimento de poderes totalitários na Europa e tendências totalitárias na política norte-americana, questionou se formas contra-democráticas de populismo eram realmente opostas às democracias liberais e suas formas de vida ou se elas eram, de fato, expressões de tendências latentes que fazem parte dos processos contraditórios de nossas democracias, as quais estão conexas tanto às suas formas sociais como à economia do livre-mercado. A aceitação dessa segunda alternativa levou a primeira geração da Teoria Crítica a criar um modelo capaz de dissociar, em algumas situações, a democracia como um horizonte normativo de sua versão liberal. Podemos agora perguntar se existem formas democráticas de populismo que enfatizam demandas por inclusão. Admitir que a decomposição do corpo político liberal é resultado de suas contradições internas nos permite formular uma crítica que busca recuperar a possibilidade de transcender os horizontes normativos estabelecidos pelos modos de reprodução material do capitalismo tardio. Devemos aceitar novamente esse tipo de estratégia crítica ou devemos nos engajar em uma metacrítica que ataca os pressupostos imanentes desse criticismo?
De um lado, devemos notar que o movimento de possível decomposição do corpo social liberal se expressa não apenas em formas regressivas de racismo, xenofobia e múltiplos modos de discriminação, assim como de políticas identitárias. Em algumas situações, o crescimento do populismo também traz à tona tentativas de repensar a dinâmica da soberania popular e do reconhecimento social. Isso nos impele a analisar a urgência implícita de formas de ceticismo sobre a democracia que surgiram na vida contemporânea. Algumas questões emergem: todas essas formas de ceticismo estão buscando a mesma coisa ou algumas delas são expressões de um ressentimento social corrosivo enquanto outras são modos de ceticismo que, dialeticamente, apenas negam a democracia para preservá-la? Se levarmos adiante a segunda hipótese, podemos falar em formas de “populismo democrático” ou devemos aceitar que todas as dinâmicas da soberania popular no populismo serão regressivas e paralisantes?
Considerando essas questões e estratégias, esse seminário busca confrontar analiticamente as reações contemporâneas locais ao enfraquecimento do campo potencial de consenso em democracias liberais. Perguntas dessa natureza formam a base para esse seminário que convida filósofos, sociólogos, antropólogos, cientista políticos e psicanalistas da América Latina, Europa, EUA e África para discutir juntos esses grandes desafios ao pensamento crítico contemporâneo.
Vladimir Safatle é professor do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Junto de Judith Butler, o filósofo e escritor abre o Seminário Internacional Os Fins da Democracia, que acontece de 07 a 09 de novembro, no Sesc Pompeia.
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The Ends of Democracy:
Populist strategies, Skepticism about democracy, and the Quest for Popular Sovereignty
Vladimir Safatle (USP)
The rise of many populist movements in recent years is a phenomenon that leads us to pose structural questions about the challenges for liberal democracy and its institutional forms. We can ask whether liberal democracy, this practice of government that emerges after World War II, is facing today the imminence of its historical demise, the result of widespread resentment produced by non-realized social demands. Or we can also ask whether populism is just a temporary social regression that should be treated as a kind of political pathology proper to moments of crisis in capitalism. Finally, we can ask whether populism contains a potential relationship to popular sovereignty and its demands, ones that have been overridden or suppressed by contemporary global powers.
Regardless of how we answer these important questions, it is certain that the rise of populisms compels us to face questions about “the ends” of democracy in the double meaning proper to this expression. Ends of democracy because we face a question about its purposes and promises, but also ends of democracy because is possible that we are seeing the imminent collapse of a specific political form of government. In a way, these two meanings are interconnected. If we fail to ask today about the purposes of democracy, about the fate of its promises of social emancipation and about the limits of its liberal form up until now, we risk accelerating the end of popular desire for a political experience of democracy, that millenary signifier.
To ask today about the ends of democracy in this double meaning holds out the promise of recuperating the relevance of a critical approach like the one formulated by the first generation of Critical Theory. This conference/seminar proposes then to discuss the contemporary validity of this critical model and the need for its re-actualization. In this sense, this meeting will seek to open a space for debate that is not only an academic one, but immediately a necessary collaborative exercise of political imagination.
Keeping our contemporary situation in mind, let us remember how the first generation of Critical Theory, facing the rise of totalitarian powers in Europe and the authoritarian trends in American politics, asked whether counter-democratic forms of populism were really opposed to liberal democracies and their ways of life or if they were, in fact, expressions of latent trends, of contradictory processes within our own democracies, linked as they with free-market economic and social formations. The acceptance of this second way led first generation Critical Theory to a model capable of dissociating, in some situations, democracy as a normative horizon and its liberal version. We can now ask whether there are democratic forms of populism that highlight the demand to be included in the political field, and to transform its character through that inclusion. To accept that the decomposition of the liberal social body is the result of inner contradictions, leads us to a criticism that recovers the possibility of transcending the normative horizons established by the modes of material reproduction in late capitalism. Should we accept one more time such kind of critical strategy or should we engage a metacriticism of the presuppositions immanent to this criticism?
On the other hand, we should note that this movement of possible decomposition of the liberal social body expresses itself not only in the regressive forms of racism, xenophobia and the multiple forms of discrimination and identitarian politics. In some situations, the rise of populism also brings attempts for rethinking dynamics of popular sovereignty and social recognition. This leads us to analyze the implicit urgency of the forms of skepticism about democracy that have emerged in contemporary life. Some questions emerge: are these forms of skepticism all seeking the same thing or are some of them expressions of corrosive social resentment while other are forms of skepticism that, in a dialectical fashion, only negate democracy in order to preserve it? Following upon this last possibility, could we speak about forms of “democratic populism” or should we accept that all dynamics of popular sovereignty within populism will be regressive and paralyzing?
Having these questions and strategies in view, this seminar seek to confront analytically the contemporary and local reactions to the weakening of the potential field of consensus within liberal democracies. Questions of this nature form the basis of this seminar that invites philosophers, sociologists, anthropologists, political scientists and psychoanalysts from Latin America, Europe, USA and Africa to discuss together this major challenge for contemporary critical thought.