Postado em 29/09/2017
Era a terceira consulta só naquela semana.
O médium estranhou.
Despencam pessoas ‘adesivadas’ de espíritos pesados, pegajosas influências, maleitas do corpo com nascentes nas inconsequências da alma. Vastas camadas de tecidos etéreo-adiposos. Se eles pudessem ver o fardo que os acompanha!
Enfim, alguns casos merecem tratamento intensivo, com risco até de que a má companhia os conduza a um infortúnio maior. Dize-me como quem andas, deste ou de outro mundo, e eu te direi quem és.
Mas não parecia ser este o caso daquela moça em sua terceira consulta só nesta semana!
Ela olhava o mundo com leveza, olhos lindos sem aquelas molduras escuras das olheiras, nem pele gasta de insônias.
Altiva, passos seguros, sem as dúvidas nas pegadas, imprimindo forte seu desejo pela vida, sem o ‘fora-do-eixo’ dos atordoados, e sempre com um sorriso de pintura.
Ela até destoava na fila de irmãos esperando para serem atendidos.
E a fila era enorme naquele que era considerado um dos maiores centro espíritas de cura do Rio de Janeiro, quiçá do Brasil. Pessoas de várias cidades, estados, regiões e, não raro, países. Neste tipo de clínica, o idioma sutil era o das dores do espírito.
Mas o médium notava que ela, a cada dia, vinha mais elegante, perfumada e com um frenética excitação.
O que a trazia até o centro?
Gratidão – sim, gratidão ainda mobiliza o mundo –, medo ou um especial interesse em alguém?
Ou talvez o mesmo interesse que ele sentia por ela.
Sua alma gêmea não tinha ainda esbarrado nele nesta encarnação. Foi comunicado que ela, sua alma gêmea, apareceria naquele centro.
Já passaram duas décadas.
Seria este o momento?
Ele, como todo fiel, não duvidava, esperava sem dúvida, o dono da fé, quarando palavras mágicas para dizer a ela.
Ele desconhece a solidão porque sempre conviveu com muitos desencarnados; sabia que só se sente só quem realmente quer sentir-se só. Mas aguardava, sim, o encontro anunciado.
Aí caiu a gota de esperança no meio do juízo dele.
E se ela veio por minha causa?
E se ela vê tanta beleza em mim como eu vejo nela?
Encantamento assim pode mesmo ser via de mão única?
Eis que ela senta-se novamente na frente do médium e o seu sorriso ganha metade de seu rosto inteiro.
O sorriso é tão grande que sai-lhe da cara e mancha tudo ao redor de alumbramento
Como ele não iria pensar em afeto?
O centro espírita tinha lhe educado a oxigenar seu coração.
Ela vinha enamorando-se sim e era isto que a trazia ao centro.
E assim seguiram estreitando-se corpo e almas.
Do outro lado, ainda na ignorância dos folhetins, o médium pegou afeto.
Ficava na torcida para ver aquela moça na fila na semana seguinte.
Quando não a via, entristecia, ensimesmava-se de saudades.
Mas quando ela aparecia, nem mesmo o espírito guia, mestre daquele centro, era recebido com tanta honraria.
Quando agigantou-se de coragem, pediu licença ao médico desencarnado com quem trabalhava para conversar com a moça.
Só um minuto, quase a ‘sós’.
Mas ela fugia de suas perguntas preliminares como quem tem fome pelo prato principal.
E foi aí que ele entendeu.
Ela não vinha vê-lo.
Era toda de um vetor só: o médico.
O que o médium não sabia era que ela tinha se encantado – termo mais que apropriado para o caso – mas pelo espírito desencarnado que a atendia... ‘através’ dele.
Um nobre médico de origem europeia, fino nos tratos, que engasgava vez ou outra no português, o que só lhe conferia ainda mais charme.
E o médium era apenas a porta que lhe dava passagem.
Para ela, o médico era uma voz vizinha, que já frequentou muito seus tímpanos, que já lhe jurou em outros idiomas e terras carinhos eternos, uma voz que já lhe disse ‘sim’, várias vezes, em público e no privado.
Quando o médico tocou seu pulmão, examinando-a, ela reconheceu aquele toque.
Já se pertenceram.
Ela não conseguia esquecê-lo.
A lembrança estava só adormecida; hibernava nela o que se chama por aí de felicidade.
Desde a primeira consulta, ela saiu caminhando pela cidade, recordando as minúcias daquele encontro.
No trabalho, no ônibus, no banho, na cama.
Precisava revê-lo.
Por isto voltava.
Fez cenas, subornos, desmaios, para convencer a atendente do centro a deixá-la ingressar na sala de cura.
O médium baixou a vibração e deixou-se ser triste.
E brotaram espíritos melancólicos no jardim de suas ideias e sonhos.
Precisou de mais reza para desintoxicar-se de tanta lamúria; droga mais forte não há.
Num acesso juvenil, fez greve.
Não foi um dia e deixou a moça desfalcada de seu flerte kardecista.
Soube que ela tinha até levado flores.
Quando retornou, fez forte resistência, não queria mais trabalhar com aquele médico.
Ficava difícil saber-se um cafetão das esquinas místicas.
Seu corpo era o suporte, o cavalo, para a traição que tanto o feria.
Era fundamental a sua presença para que o crime se consumasse, na sua frente.
E, quando a consulta terminava, ele ainda ficava com a prova do crime: o perfume dela.
O perfume dela corroendo suas roupas, sua pele, sua memória.
Já era suficiente ser preterido, mas ser o veículo para a consumação daquele triângulo, isto não.
Disse não.
Foi à administração e confessou baixinho.
Não poderia mais atender com aquele irmão, recebê-lo, indagou se haveria possibilidade de trocar de médico espiritual.
Os gestores ficaram admirados, mas perceberam que o bom funcionamento da casa dependia agora da lisura de suas ações, de sua concentração, do equilíbrio do seu peito.
Aceitaram a carta de demissão.
Demorou um pouco porque tinham que organizar tudo com a administração do plano superior; eram duas burocracias e papeladas, mas deu tudo certo ao final. O médico agora faria dupla com outro médium.
A moça, quando soube que ele se demitiu daquela entidade, correu até ele.
Veio agradecer.
Se não fosse por ele, ela não conheceria o amor de suas vidas.
Entregou-lhe um mimo.
Um beijo na face.
Que era tudo que poderia.
Ele desejou felicidades, era íntegro, tinha aprendido a não guardar rancor, mágoa, coisa de gente sem Deus.
Ela se foi e ele a viu pela última vez.
Pelo menos nesta vida.
Depois, o médium marchou para sua nova sala onde trabalharia com uma enfermeira desencarnada.
Sempre quis frequentar esta sala, mas não tinha tempo.
E quando a enfermeira incorporou, ele a ouviu sussurrando entre os desvãos de suas almas antigas:
“Há quanto tempo te esperava, meu amor!”
Newton Moreno é dramaturgo e escritor. Escreveu a peça Agreste, que recebeu os prêmios APCA de Melhor Texto e Shell de Melhor de Autor. Em 2016, lançou a coletânea de contos Ópera e Outros Contos (com incentivo do Funcultura).