Postado em 29/09/2017
Versátil e criativo, Paulo Autran mergulhou nos mais diversos gêneros teatrais ao longo de quase seis décadas de uma exitosa carreira
“Paulo é um exemplo de vida dedicada ao teatro. E fez uma carreira tão bonita.” Conhecida por não jogar confete ou desperdiçar palavras doces, a temida crítica teatral Barbara Heliodora (1923-2015) assim se expressou ao falar de Paulo Autran (1922-2007). Na medida, definiu uma trajetória que começou em 1949, com a peça Um Deus Dormiu Lá em Casa, na qual Autran contracenou com Tônia Carrero, e terminou em 2007, na peça O Avarento, sua quarta incursão pela obra do dramaturgo francês Molière (Jean-Baptiste Poquelin). Antes dela, aventurou-se em O Burguês Fidalgo e As Sabichonas (durante os anos 1960) e Tartufo (1985). Barbara Heliodora, crítica e admiradora, assistiu a todas as encenações de que o ator participou, da primeira à última. E olha que não foram poucas. Nos seus 57 anos de carreira, Autran atuou em 90 espetáculos.
Créditos: Fotógrafo não identificado - Acervo Paulo Autran - Instituto Moreira Salles
Anos iniciais
Carioca que passou a viver na capital paulista, Paulo Autran queria ser advogado. Graduou-se em Direito pela Universidade de São Paulo em 1945. Trabalhou na área por sete anos, entremeando o teatro amador com o cotidiano burocrático da profissão. Em 1947 já fazia parte do grupo Os Artistas Amadores, e também participou do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e do Grupo de Teatro Experimental (GTE). A trajetória sedimentada na variedade de experiências com grupos amadores levou-o à primeira atuação profissional em Um Deus Dormiu Lá em Casa (1949), do dramaturgo Guilherme Figueiredo, encenada aos 27 anos.
A dupla com Tônia Carrero foi benéfica a ambos. Após a temporada, foram contratados: Tônia para o cinema, na companhia Vera Cruz, e Autran continuou no teatro, na companhia fundada em 1948 por Franco Zampari, o TBC. A amizade entre os atores se estendeu na companhia Tônia-Celi-Autran, criada em 1956, no Rio de Janeiro, com o ator Adolfo Celi. A trupe excursionou pelos Estados Unidos e América Latina nos anos 1960. Na Argentina, Autran foi premiado como melhor ator estrangeiro. Após experiência bem-sucedida, encerraram as atividades em 1961 escolhendo para a montagem a comédia do francês Marcel Achard Tiro e Queda.
Para Ferdinando Martins, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e diretor do Teatro da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Autran é figura central no processo de modernização do teatro brasileiro nos anos 1940 e 1950. “Nesse período as atrizes dominavam a cena, pois havia uma resistência de alguns homens a trabalhar sob o jugo de um diretor. Autran, junto com Sérgio Cardoso, Walmor Chagas e outros, deram suporte à carreira de mulheres, Cacilda Becker e Tônia Carrero”.
Teleteatro
A estreia na tela da TV se deu em 1960, na novela Gabriela, Cravo e Canela, exibida pela TV Tupi. Retornou à teledramaturgia em 1979, com Pai Herói, de Janet Clair. A televisão também se tornou um palco de clássicos: Guerra dos Sexos (1983) em química perfeita com Fernanda Montenegro, Sassaricando (1987), retomando a dobradinha com Tônia Carrero. Também se destacou no cinema, inicialmente na Vera Cruz, grande companhia do audiovisual brasileiro. De lá partiu em 1952 com Veneno (Gianni Pons) e Apassionata (Fernando de Barros). Dono de números nada modestos, atuou em 20 filmes, sendo lembrado em preto e branco por estar na pele de Porfírio Diaz, líder político de Terra em Transe (1967), marco do Cinema Novo dirigido por Glauber Rocha. Em 2006 esteve em O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hamburger). Embora fosse conhecido pela versatilidade, era no teatro que Paulo Autran encontrava a maior realização, levando ao público extensa bagagem que reunia tragédias e comédias, Shakespeare e literatura brasileira, como o clássico de João Cabral de Melo Neto Morte e Vida Severina.
Teatro é amor
Parafraseando o ator francês Jean-Louis Barrault, Autran costumava dizer durante as conferências ministradas para estudantes que “teatro é amor”, frase que ecoou em sua fase mais madura. Em números e influências, é factível afirmar que o teatro simbolizava sua vela e seu leme. “Ele foi um pleno homem de teatro, usando esse veículo e seu talento para expressar o ponto de vista que tinha sobre o país e a sociedade”, observa José Cetra Filho, mestre em Artes Cênicas pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e autor do livro O Palco Paulistano de Golpe a Golpe, 1964-2016 (Giostri, 2017). “Nada mais verdadeiro para um homem que além de grande ator foi também produtor, tradutor e diretor, deixando um legado que é exemplo do bom teatro realizado no Brasil desde a época do TBC (final da década de 1940) até 2007, ano de sua morte”, completa Cetra Filho.
Em entrevista exclusiva para a Revista E, em julho de 2002 (https://www.sescsp.org.br/online/artigo/1683_ENTREVISTAPAULO+AUTRAN), o ator detalhou, no tom sincero que costumava usar, qual o processo para topar a encenação de um texto. Em primeiro lugar, variar. Se vinha de uma tragédia, emendava uma comédia, ou um drama. “Apesar de não cantar, fiz os dois musicais de maior sucesso no Brasil: My Fair Lady, de 1962 a 1964, e O Homem de La Mancha, dez anos depois. Ambos com Bibi Ferreira. Não tenho preferência por uma história ou um gênero, o que importa é que o texto seja bom”, argumentou.
O ator foi homenageado em agosto na 45ª edição do Festival de Cinema de Gramado, já que 2017 marca os 10 anos de sua morte por insuficiência respiratória, em decorrência de enfisema pulmonar. A atriz e esposa, Karen Rodrigues, recebeu a homenagem póstuma que também contou com o lançamento do documentário Paulo Autran – O Senhor dos Palcos (Marco Abujamra). O filme esmiúça a trajetória de Autran e sua relação apaixonante e apaixonada com a dramaturgia.
Conheça – ou relembre – algumas das atuações de Paulo Autran que marcaram o teatro brasileiro
Uma Certa Cabana (1953)
Texto de André Roussin e direção do Adolfo Celi, no TBC. Paulo fazia par romântico fora dos padrões com Tônia Carrero. Trama ousada para a época, pois preconizava ideias de amor-livre com a história de uma mulher casada que se envolveu sexualmente com outros dois homens, com o consentimento do marido. O título original era A Lógica da Poligamia, mas a censura da época não gostou e a equipe mudou para Uma Certa Cabana.
Liberdade, Liberdade (1965)
Produção conjunta do Teatro Opinião (Rio de Janeiro) e do Teatro de Arena (São Paulo), texto de Millôr Fernandes e Flávio Rangel (também diretor). Este trabalho, composto de textos de dois autores sobre o conceito exposto no título interpretados por quatro atores, é um marco na resistência à ditadura militar.
O Avarento (2006)
Texto de Molière, direção de Felipe Hirsch, que estreou no Teatro Cultura Artística. A peça foi vista por mais de 120 mil pessoas nos dez meses em cartaz. Além de ser simbólico por ser sua última atuação no teatro, é relevante o fato de ele ser dirigido por alguém de uma geração mais nova, surgido nos anos 1990, mostrando a abertura do ator para o novo.
*Fonte: Ferdinando Martins, professor da Escola de Comunicações e Artes e diretor do Teatro da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Teatro Paulo Autran é referência em espetáculos na cidade de São Paulo e segue homenageando o grande nome das artes cênicas brasileiras
Em agosto de 2007, o Teatro do Sesc Pinheiros passou a se chamar Teatro Paulo Autran. Com 1010 lugares, é movimentado por espetáculos e shows musicais, de artistas nacionais e estrangeiros. Logo na entrada, há o memorial com os principais troféus recebidos pelo ator no decorrer de sua carreira, como o Prêmio Saci de 1952 de Melhor Ator pela peça Antígone, e o Prêmio Shell de 2000 por Visitando Sr. Green.
A agenda do mês de outubro do teatro inclui espetáculos como Os Deuses Estão Marretando a Minha Cabeça, do dramaturgo norte-americano Richard Foreman, sobre uma Amazônia devastada pela ganância e as consequências locais e globais deste ato (de 5 a 21). Também em cartaz, a peça infantil Kazuki e a Misteriosa Naomi conta o mistério por trás de um estranho acontecimento da vida de um rapaz que vive numa montanha (dia 1º).