Postado em 30/08/2017
Bailarino iraniano acredita numa arte que ultrapassa fronteiras e na liberdade como combustível para o processo criativo
Ele já foi ficção. Sua história inspirou o filme O Dançarino no Deserto (Richard Raymond, 2015), e sua dança encanta pessoas em diferentes partes do mundo, já que ele é um dos artistas que não medem esforços para criar. Afshin Ghaffarian é um coreógrafo e bailarino iraniano, de 30 anos, que hoje vive na França. Como a dança (entre outras manifestações artísticas) está em constante tensão e censura em seu país natal, Ghaffarian traçou caminho em outras regiões, mas sem deixar de lado memórias e vivências. No mês de julho, ele se apresentou no Sesc Vila Mariana, integrando a programação do Cortina Fechada – Territórios da Arte, um panorama com trabalhos de artistas que sofreram com a censura ao redor do mundo. Durante sua temporada em São Paulo, ele conversou com a Revista E. Acompanhe a seguir.
Imagem do espetáculo O Grito, com Afshin Ghaffarian. Em junho, o coreógrafo e bailarino fez workshop para profissionais de dança, teatro e artes do corpo, no Sesc Vila Mariana | Foto: Rolf K
Liberdade
Essa temporada em São Paulo me encantou. Foi ótimo estar no país de uma das minhas grandes inspirações artísticas e intelectuais, Augusto Boal e seu Teatro do Oprimido. Acho que a censura existe em todos os lugares nas mais diferentes formas e se concretiza de diferentes modos em diferentes países. Não podemos apenas citar uma forma de censura, mas precisamos tentar reconhecer todos os modos de censura que ameaçam nossa existência e prática artística. Em alguns países, por exemplo, a censura é praticada de modo vertical, diretamente do estado (como acontece em meu país), e em outros casos acontece de maneira indireta. Há países nos quais “o mercado” controla as manifestações artísticas, o que não deixa de ser uma forma de censura, pois nesse controle fica subentendido que a criação é submetida à pressão econômica, ou seja, quanto mais clientes você tiver, mais vão lucrar com sua obra. Esse mecanismo contamina a criação.
A arte ultrapassa fronteiras. Nós podemos ampliar a liberdade de expressão à medida que expandimos o horizonte diante de nós e, assim, enfrentar os obstáculos. Como artistas, não devemos nos render a nenhum tipo de dominação e nenhuma forma de censura que ameace nossa existência artística, independentemente de nossa origem.
Estar no mundo
Ser um artista é ser um questionador, independentemente de onde você nasceu e do ambiente no qual vive. Quando se aceita o establishment, não se tem lugar no palco. Como artistas, temos que trabalhar intensamente para construir um entendimento mútuo entre povos e culturas. Uma das mais importantes tarefas de qualquer artista é tentar ser uma ponte que avança sobre as diferenças, permitindo que nos conheçamos uns aos outros. Nós devemos ajudar a narrativa de todos que acreditam na construção dessas pontes, em vez de fortalecer a crença na guerra e na destruição. Sinto-me em constante criação. Apesar das dificuldades, temos que encontrar soluções para estar no mundo. Como disse Pina Bausch [coreógrafa e bailarina alemã (1940-2009)], criar é a única forma de estar no mundo.
Sem alarmes, sem surpresas
Na verdade, não vivenciei um momento “Aha”, agora é isso que quero fazer em minha experiência artística. Minha carreira como performer começou em 1999, como ator de um curta-metragem. Então, na universidade, aos 20 anos, estudei teatro e performance em produções realizadas em Teerã. Meu jeito de me expressar está conectado às minhas experiências, as quais estão em contato com outras culturas ao redor do mundo. No palco, essa expressão aparece num contexto potente e ampliado, e não restrito a questões geográficas ou locais. É engraçado, pois durante muitos anos, meus amigos e eu não reconhecíamos nossas performances como dança, sempre pensávamos num teatro físico. Mais tarde, entendemos: o que fazíamos era dança contemporânea. Curiosamente, me pergunto qual é a diferença entre o que chamamos de dança e o que chamamos de teatro. Não vejo diferença entre ambos, apenas categorizações.
Especialmente nas culturas teatrais orientais, não há diferenças entre teatro e dança, ator e dançarino. Em muitas regiões é possível usar a mesma palavra para se referir a essas práticas. No Ocidente, teatro e dança possuem histórias diferentes e são executados em espaços variados, para um público diverso. No meu caso, deixo para o público que tem acesso aos meus espetáculos a definição: ator ou dançarino. Não importa o termo, sou apenas o agente.
Vida no retrovisor
Os espetáculos são uma tentativa de expressar minha vida em performances (dança ou teatro). As histórias e minhas memórias são um pretexto para falar sobre minha vida, já que nossas vivências acabam sendo, ao mesmo tempo, individuais e coletivas. Por isso não tento passar mensagens específicas durante minhas performances, mas deixo o público criar as próprias histórias e mensagens de acordo com a experiência que compartilhamos no teatro.
No palco, sinto-me livre. Por isso, talvez eu tenha escolhido ser artista e criar, porque acredito que existir está ligado à resistência, ao resistir. Esse processo deve ser uma luta constante em nós mesmos, para juntos construirmos um mundo melhor. Gosto da vida no palco porque é uma condição transformadora e uma performance pode começar a qualquer momento. O palco é minha verdadeira casa, é onde me reinvento. Eu renasço em cada experiência artística.
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