Fechar X

Infantil
Projeto Curumim

Postado em 01/06/1997

Todo dia, pontualmente, às 5 horas da manhã, Jaílta Santos Costa levanta e prepara o café, antes de chamar suas quatro filhas. As meninas não têm muito tempo para se espreguiçar, tudo tem de ser feito rapidamente; o trânsito a essa hora é infernal e os ônibus saem lotados. Às vezes, parece que continuam a sonhar dentro do veículo. Jaílta mora no Capão Redondo, mas trabalha na Secretaria da Fazenda, em pleno centro da cidade, como técnica de apoio de arrecadação tributária. A atividade começa às 9 horas, mas antes precisa deixar as gêmeas, Dóris e Laís, na creche da Secretaria, e as mais velhas, no Sesc Carmo. Lívia e Agnes acordam sem reclamar, pois vão para o Projeto Curumim. Lá poderão participar com mais 28 crianças, com idades variando entre 7 e 12 anos, das diversas atividades de lazer e cultura oferecidas pelo projeto que atende, em dois períodos, um total de 60 crianças provenientes de famílias de baixa renda. Sem isso, as crianças teriam de ficar em casa sozinhas ou Jaílta não poderia trabalhar. Opção improvável, pois o salário de 908 reais é fundamental no orçamento da família.

Pela manhã, o centro está em ebulição, ônibus chegam de todos os pontos da cidade e cospem uma infinidade de pessoas, marreteiros armam suas barracas, kombis entram nos calçadões para descarregar produtos, pessoas correm para todos os lados atrás de seus afazeres. Embora cedo, já é possível ver meninos que moram na Praça da Sé cheirando cola.

No segundo andar da Rua do Carmo, no 147, fica a sala do Projeto Curumim. A proposta do projeto é buscar um desenvolvimento total da criança através de jogos para se chegar à socialização, à autonomia, à responsabilidade e ao respeito. O trabalho realizado não visa complementar o aprendizado escolar, mas oferecer uma formação sensível. "Eu gosto mais do Curumim do que da minha escola porque lá a gente pode brincar. Na escola, a gente tem que ficar muito séria e não pode fazer nada", diz Lívia. Na primeira hora, é servido um lanche. Muitas crianças farão sua primeira refeição. Na segunda hora, podem brincar do que quiserem: brinquedos, jogos, teatro, tintas e canetinhas coloridas, gibis e livros. Depois é realizada uma atividade dirigida pelos instrutores e, no final do período, as crianças sentam-se em círculo e conversam sobre as atividades do dia, devolvem os gibis e livros tirados de empréstimo e pegam novos, se quiserem ler em casa.

Às onze horas, Jaílta, que está no seu horário de almoço, pega as meninas no Curumim e vai almoçar no restaurante da Secretaria da Fazenda; depois leva-as para escola que fica na Rua da Glória. Apesar de tanta correria, Jaílta conseguiu conciliar adequadamente os horários de todas. Este ano, Lívia irá completar 13 anos e deverá sair do Curumim. "Eu gostaria que o Sesc tivesse um projeto para pré-adolescentes. O ano que vem vou ter que procurar um lugar para que a Lívia faça alguma atividade pelo menos duas vezes por semana", diz Jaílta.

Às 12h30, de segunda à sexta-feira, Emerson Souza, 10 anos; Maicow Cavalcante, a mesma idade, e Franklin Silva, 9 anos, saem do Projeto Curumim e andam sete quarteirões até chegar à Rua João de Carvalho, no 82, na Baixada do Glicério. Emerson e Maicow se despedem antes de chegar ao ponto final. Os meninos andam pela rua treinando estrelas e conversando animadamente sobre o que ocorreu pela manhã no Curumim, alheios ao que se passa na rua. No final do percurso fica a casa de Franklin, que mora com o pai, a madrasta e Stephani, a irmãzinha de 2 anos. Na sala do pequeno apartamento, a televisão ocupa um lugar de destaque, ao lado do sofá, da mesa de jantar, da geladeira e do fogão. Tudo extremamente limpo e arrumado. Nas paredes, fotografias das crianças chamam a atenção do visitante. A televisão, constantemente ligada, parece aplacar a energia dos meninos que correm no pequeno corredor que liga a sala ao quarto. Franklin não tem muito tempo para fazer a lição, almoçar e ir para escola. Antes de entrar no Curumim, ficava em casa em frente à televisão ou descia para brincar na rua. "O Curumim foi muito bom, porque antes o Franklin era uma criança bastante fechada, inibida. Quando ele saía, parecia uma pessoa desconsolada. Eu trabalhava fora e ele ficava na rua. Eu achei melhor para ele uma atividade, porque se ficasse lá embaixo ia aprender o que não presta", diz Carmelita Rosa, madrasta do menino.

Elias Augusto da Silva, pai de Franklin, veio do Recife há quinze anos. Assim que chegou a São Paulo, começou a trabalhar como estoquista nas Lojas Americanas. Nessa época, fez um curso no Senac e passou à recepcionista do Hotel Othon Palace e lá foi crescendo. Atualmente, trabalha como auditor no Hotel Transamérica. Depois, vieram a mulher e os filhos. Do Recife, Elias trouxe um diploma de contador e a crença cega na educação. "Ninguém sabe do futuro, mas no momento quero trabalhar e conquistar as coisas aqui em São Paulo. Não é fácil criar uma criança em qualquer lugar do mundo. Eu tive uma educação e é isso que eu procuro dar aos meus filhos. Quero que eles tenham tempo suficiente para estudar, que valorizem as matérias. Eu me preocupo com o que ele vai fazer quando sair do Sesc", diz. "Eu tive uma educação muito rígida. Meu pai era comerciante, possuía três salões de barbeiro. Mas ele morreu muito cedo, quando eu tinha 13 anos, e a nossa vida mudou completamente. Minha mãe é uma vitoriosa, conseguiu tocar a vida e educar oito filhos sozinha. Hoje eu zelo muito por ela. Cuidou de todos os filhos numa cidade grande e todos são pessoas muito decentes. No começo, minha mãe dirigiu os negócios do meu pai, mas não era a mesma coisa. As pessoas foram se afastando e a gente teve que fechar dois salões, as coisas ficaram difíceis. Se você não tem uma estrutura, afunda mesmo." Elias preocupa-se com a violência das ruas. "Eu tento explicar para o Franklin: a vida é assim, assado. Levo ele para a Praça da Sé e mostro como é a vida, o que é certo, o que é errado. O mundo é cão mesmo, numa cidade grande, você precisa se sair bem. Pela televisão dá para ver muitos filhos de gente com um padrão bem mais alto que o meu entrando em situações complicadas. Se você não tem boa estrutura, acaba entrando numa fria", diz Elias.

No dia 15 de julho de 1972, o mineiro Gersino Chagas Oliveira chegava a São Paulo vindo de Salinas, uma pequena cidade abaixo de Montes Claros. "Qualquer pessoa que sai de algum lugar procura o melhor. O norte de Minas, como qualquer norte, é um lugar de pouco desenvolvimento. No começo, quando cheguei aqui, foi muito difícil, mas, apesar de tudo, era mais fácil do que hoje. Eu saía para procurar emprego e logo achava, hoje emprego é a coisa mais difícil. Eu deixei a roça do meu pai para chegar à terceira maior cidade do mundo", conta. O primeiro emprego foi numa pastelaria, Gersino fazia garapa. Depois entrou num curso do Senac e passou a trabalhar como ajudante de garçom, no Hotel Hilton, e logo subiu de posto e passou a garçom. Alguns anos depois, foi trabalhar no Hotel Jaraguá. Nessas alturas, Gersino estava com uma escolaridade melhor e passou em terceiro lugar num concurso para auxiliar de recepção no Palácio do Governo.

A vida de Gersino transcorria bem, mas viver numa cidade tão grande como São Paulo, sem a família e os amigos, era difícil para uma pessoa que havia saído de uma cidade onde todos se conheciam pelo nome. No dia 1o de março de 1986, Gersino conheceu Maria Eunice Oliveira Ferreira e, em fevereiro de 1987, nasceu o primeiro filho do casal: Gerson. Em março de 1991 veio Marcos Vinícius.

Para dar conta do recado, Gersino largou o emprego no Palácio do Governo e começou a trabalhar na economia informal, vendendo produtos importados do Paraguai. Maria Eunice parou de trabalhar para cuidar dos filhos. A família instalou-se num pequeno apartamento da Rua Tabatinguera. Os meninos, quando não assistiam à televisão, passavam o tempo brigando por qualquer coisa e por tudo ao mesmo tempo. A rua é perigosa para deixar as crianças saírem e qualquer menino que tem pouco espaço possui uma energia enorme. A solução foi matricular Gerson no Curumim. O Sesc Carmo fica a poucos metros da casa, Gerson pode ir e voltar sozinho. "Aqui no centro não tem lugar para as crianças brincarem, as únicas opções são pagas, então as crianças têm que ficar presas no apartamento, o que é difícil porque elas querem ir para a rua", diz Eunice. "Depois que o Gerson entrou no Curumim até o comportamento dele mudou, ele ficou mais organizado. Lá eles têm horário para tudo e as crianças seguem esse sistema. Eu sempre estou em contato com os professores que me ligam se ocorre alguma coisa", completa.

"Antes, quando eu chegava da escola, ia direto para televisão. Agora não tenho mais tempo, quando chego em casa, faço minha lição e vou direto pro Curumim. Eu acho bom o projeto porque lá estou tendo muitas experiências. Aprendendo a pintar, a ligar luz, coisas que eu não aprendo em lugar nenhum", conta Gerson. Este ano, Eunice pretende matricular o segundo filho no projeto.

Gersino tem planos de voltar para Salinas, construir uma casa rodeada de árvores e criar vacas de leite e cavalos. "Aqui em São Paulo, você é mais um número. Fazer amigos aqui é a coisa mais difícil", diz. Gerson discorda terminantemente. "Eu queria só passar as férias em Minas, porque aqui eu tenho muitos amigos. Lá eu não sei se vou conseguir arranjar tantos como eu tenho aqui."

Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    Você tem 400 caracteres. (Limite: 400)