Postado em 28/07/2017
por Santiago Nazarian
Ilustração Marcos Garuti
Na noite de 28 de março de 2017, o escritor gaúcho João Gilberto Noll teve um acidente vascular cerebral. A caminho da porta, de saída para uma oficina literária, esqueceu-se por alguns instantes para onde estava indo, e a lembrança retornou através de um tsunami de sangue e incertezas que inundou seu cérebro, deixando-o de se concentrar no ato seguinte para concentrar todos os esforços em se manter vivo. O corpo veio abaixo. A cabeça bateu numa quina. E Noll foi puxado pela gravidade ao carpete onde permaneceria inconsciente por mais alguns minutos, até definitivamente deixar de estar. Foi encontrado poucas horas depois por sua sobrinha, já tarde demais.
Nessa mesma noite, no Largo do Arouche, o bancário Jair Varella teve um infarto. Seu corpo também despencou, mas sobre um chão de tacos, o que causou um baque que pôde ser ouvido por sua vizinha de baixo. Ela bateu à sua porta, avisou o porteiro, e depois de muito insistir conseguiu que abrissem a porta do apartamento, encontrando Jair já morto.
Na frente do computador, no Jardim Miriam, Leandro morria com a corda no pescoço, estimulando-se por asfixia com um filme erótico. A prática de risco oscilou entre o acidente e o suicídio, e seu corpo teria sido encontrado suspeitamente confeitado, não fosse pela meia dúzia de gatos que ele abrigava. Menos de um dia depois, sem alimento, os gatos subiram na cama, lamberam o creme, comeram o corpo. A carcaça foi encontrada pela mãe ainda em atitude suspeita, mas sem vergonhas visíveis-risíveis. Os gatos esparramados pelo quarto, gordos.
Quanto a mim, não tinha gato, nem sobrinha, nem vizinhos. Morava nessa casa isolada, no fim da rua, espremida entre prédios, esquecida pelo mundo. Minha única companhia sorrateira e silenciosa, em patas acolchoadas, uma coelha. Não emitia som, não alertava vizinhos, não verbalizava queixas nem completava as aspas de uma conversa. Mas precisava de mim. Espiava-me sorrateira na porta do quarto, fugia para longe quando me aproximava; era preciso muita imaginação para eu me sentir amado, mas não é sempre assim? Projetar carências para completar silêncios. Tomar uma aproximação como sinal de carinho. Não humanizamos os sentimentos dos animais mais do que interpretamos os sentimentos de nosso semelhante de acordo com nossos próprios interesses.
Comprei a coelha por isso. Numa passada inconsequente por uma pet shop. Pensava em ter um cachorro. Resistia em adotar um gato. Coelho me pareceu um bom meio-termo, não dá nada de trabalho, me garantiu o vendedor. Levei o animal a pé para casa numa caixa de papelão. Chegando em casa a caixa já se desfazia em arranhões. Separei um pote com água, uma bandeja com feno, uma tigela de ração, enquanto a coelha se escondia atrás da geladeira. Permaneceu assim. Só sei que comia porque a tigela se esvaziava, a bandeja se enchia de bolotas sem cheiro. Alimentava-se escondida de mim.
Tarde da noite, zapeando entre canais, lendo um romance mal traduzido, olhando perdido para a rachadura na parede, esperava pela aproximação. Vez ou outra surgia sua cabeça, me espiava curiosa, ansiosa para que eu me retirasse, nunca se aproximava. Nunca se sentou no sofá comigo, nunca roeu as páginas da minha vida. Nossa relação era essa não relação, mas era. Ter um animal que não me aceitava era melhor do que não ter nada.
Um bicho de estimação é um exercício de síndrome de Estocolmo. E eu sentia que fracassava miseravelmente como sequestrador. Ela não precisava de mim, eu não gerava empatia; perguntava-me se para a síndrome se estabelecer era preciso um mínimo de charme por parte do perpetrador, um mínimo de ameaça, transgressão, juventude, coisas que eu não tinha, e a coelha sentia. A coelha sentia falta.
Certa vez a levei para dar uma volta na praça. Agachei-me embaixo da geladeira, estiquei-me para agarrá-la, encurralei-a no banheiro. Só o esforço para a colocar debaixo do braço já me extenuava, e ainda tínhamos de sair. Na falta de um cachorro, passeava com coelho; não foi uma boa ideia. Coelhos são presas, animais assustados, não sabem aproveitar a liberdade, têm medo. A praça tinha um cercado para as crianças, ou um cercado para os cachorros, um cercado para os cachorros não entrarem, um cercado para as crianças não fugirem, como minha coelha. Eu a soltei lá. Poucas dezenas de metros circulares. Foi o suficiente para se manter longe de mim. Aprender o quanto poderia correr. Eu aprender o quanto não podia mais. Quando ela enfim se cansou, um estranho solícito a apanhou para mim, entregou-me com pena. Voltei para casa colocando-a no chão, com dor no peito.
Há muito tempo que vinha me sentindo mal, e começava a pensar se era efeito da solidão, psicossomático. A queimação na garganta, a dor de cabeça, as juntas duras. Por mais que não queiramos precisar do outro, precisamos. O corpo impõe, ao menos um checkup eventual, na minha idade. Eu não tinha médico, nem plano de saúde, adiava a consulta para quando se fizesse realmente necessária, imperativa, indispensável, quando não pudesse mais suportar, respirar, quando não conseguisse nem mesmo me arrastar até um posto de saúde.
Era o mesmo com minha casa, degradada. Os fios dos eletrodomésticos roídos pela coelha, remendados com fita isolante. Os móveis carcomidos. O pó de cupim a que eu fazia vista grossa, porque seres tão diminutos nunca seriam capazes de acabar com a casa antes de mim, antes de a coelha acabar comigo. Eu tomava um analgésico, eu dormia, e esperava que o tempo apagasse os sintomas quando o tempo terminasse para mim, arrastando-me enquanto eu sobrevivia.
Naquela tarde, naquela noite, naquele último final de tarde, em algum horário entre isso, deitei-me para descansar do passeio com a coelha. E nunca mais me levantei. É o que chamam de uma morte pacífica, ainda que seja bem provável que tenha acontecido em meio a pesadelos, como são perturbados os sonhos vespertinos. Dormimos ainda na luz do dia e acordamos no escuro com uma sensação terrível em nosso relógio interno. Um descompasso, algo que foi perdido. Só que dessa vez, eu não acordei. E, no dia seguinte, quando eu deveria, embora não devesse, também não.
Não havia ninguém para estranhar. Ninguém para dar por minha falta. Nem mesmo a coelha, que vivia sob o mesmo teto. Muito menos a coelha, que vivia sob a geladeira. Ela só deve ter sentido algum incômodo quarenta e oito horas depois, quando não tinha mais folhas verdes, água fresca, ainda a casa toda para roer.
O que diferencia um homem de um animal? O que diferencia um animal de um vegetal? Eu, um homem morto, de um cacto resistindo num quarto sem luz do sol. O que diferencia um ser morto de um vegetal vivo? Meu corpo dando frutos. Pulsante e esquecido, a proliferar. Bactérias se multiplicando. Fungos irrompendo. O colchão tornando-se um solo fértil embebido em fluídos de mim mesmo. Em poucos dias meu corpo morto era o que havia de mais vivo naquela casa, o que havia de mais vivo na minha vida, há muito tempo. Colônia de insetos, de vermes, promessa de um terreno humilde, porém seguro, para campos de begônias e florestas de pinheiros. Nah, nem tanto.
Deveria também atrair os ratos, e eles estavam por perto. Mas esperavam o sinal daquele rato gordo, de orelhas compridas, que continuava evitando meu cadáver como me evitava em vida. Roedor, porém lagomorfo, pesquisei sobre isso, os ratos não. Se tivessem discernimento para avaliar o verdadeiro caráter da minha coelha, banquetear-se-iam sem cerimônia de meu corpo. Quanto a ela, ainda evitava um ser que pulsava, chiava, efervescia, mais do que nunca fui em vida. Animal herbívoro, não via atrativo nenhum em mim.
Morri num sonho em que a Coelha se alimentava de mim. Semanas, meses depois, o Gate desbravaria a casa como posseiro algum se atrevera, invasor algum se interessara. Os vizinhos todos em edifícios, em andares altos demais para me farejarem. Fora um corretor que se cansara de apertar minha campainha. Uma imobiliária que não tinha mais oferta alguma para apagar minha casa dali. Percebiam minha casa de fato como abandonada-abandonada, assombrada-assombrada, um estandarte de lenda urbana numa cidade já tão despoetizada. Eu era o vaso de água parada para o aedes aegypti se proliferar. Soldados pós-púberes invadiam minha casa em capacetes, coturnos e máscaras de gás, não querendo inspirar nenhum traço de mim. A Coelha ainda estaria ali, viva, morta-viva, alimentando-se de mim. Encontrariam o primeiro exemplar da Coelha Vampira. Mas fora apenas um sonho, no qual eu morri.
Na vida real, na morte em que eu me encontrava, a coelha demorou semanas para se aproximar do corpo. Mas então, por fome e tédio, saltou ao meu lado no colchão. Farejou meus fungos, mordiscou meus musgos, lambeu briófitas que brotavam de meus lábios rachados. E enfim, sem seduzir-se por meu gosto, esparramou-se ao lado de meu corpo. E descansou.
Santiago Nazarian é escritor, tradutor e roteirista, autor de Olívio (Talento, 2003), Mastigando Humanos (Nova Fronteira, 2006), Neve Negra (Companhia das Letras, 2017), entre outras obras.