Postado em 29/06/2017
	A PALAVRA FLOR
	Era madrugada ainda
	A casa dormia, a rua dormia, o bairro dormia
	A cidade dormia
	Ela descia as escadas com seus pés descalços com leveza feminina
	Como se flutuasse a poucos centímetros do chão
	Como um sonâmbulo
	Ou melhor
	Como se ela mesma fosse o seu próprio sonho
	Ganhou o jardim a tempo de ouvir o primeiro canto do sabiá que despertou a cambaxirra, o canário, o coleiro, o tucano
	O galo com seu canto claro solava anunciando a manhã
	
	Ela trazia nas mãos folhas de papel que pendurava nas árvores uma a uma à moda das flores ou dos frutos
	E aquelas folhas brancas pendiam ao vento em movimentos leves e harmoniosos que lhe provocavam sorrisos de satisfação
	Eram flores e frutos que não respeitavam a cronologia exata do universo, a sazonalidade das estações
	Respeitavam tão somente os desejos de Cecília
	Aquela ideia maluca que se repetia de tempos em tempos de exibir uma nova safra de poemas em seu próprio jardim
	
	As crianças acordavam e ficavam encantadas e iam de árvore em árvore colhendo versos, palavras, poemas que a mãe delicadamente a elas oferecia
	Cecília Meireles era assim
	A sacerdotisa desse ritual queria versos como flores, como frutos para enfeitar, alimentar, colorir a paisagem desenhada pela memória
	Buscando na música entoada pelo canto livre dos pássaros a melodia mais que perfeita para o poema
	E na dança proposta pelos ventos a mudança de ritmos numa coreografia enlouquecida pelos sentimentos libertos de qualquer censura
	Como pintores que buscam na natureza a verdadeira cor de cada emoção
	E cavam na terra à procura do pigmento preciso
	Ainda intacto
	Guardado pelos séculos
	Isentos de catálogos
	Virgens de olhares
	Mas, de fato, a olhar por essa lente da crítica, exigese mais rigor
	E aquelas folhas de papel nascendo de árvores de diferentes espécies como se fossem folhas, frutas, flores do papiro semelham-se mais às artes conceituais e suas instalações
	Antecipando-se em 50 anos a esses artistas que quebraram a rigidez da moldura e sequestraram sua arte de museus e galerias e fugiram para os espaços públicos, para as ruas das cidades
	
	Os poemas expostos à explosão do sol a lhes dizer bom-dia pareciam metáforas de uma libertação
	Seja das estantes, das livrarias, das bibliotecas, ou, quem sabe, dos livros
	Poderia ser talvez uma libertação das metáforas
	Não mais poemas sobre rosas, hortênsias, margaridas
	Seriam poemas transmutados
	Poemas propriamente flor
	Não mais a flor do lácio, rosas que falam, rosas roubadas
	Seriam poemas transmutados
	Poemas propriamente flor
	Nem Maria Flor, Florípedes,
	Florence ou Nega Fulô
	Seriam poemas transmutados
	Poemas propriamente flor
	Nem mesmo as flores do mal, a flor do futuro, a flor da vida, a flor da idade, a flor da pele, a flor do sal
	Seriam poemas transmutados
	Poemas propriamente flor
	Flor do Campo, Flor de Maio, Flor do Pântano,
	Flor do Cerrado?
	Não! Seriam poemas transmutados
	Poemas propriamente flor
	Cecília estava além das imagens dos românticos ingleses
	Nem Byron, nem Blake, nem Yeats, nem Shelley
	Queria poemas transmutados
	Poemas propriamente flor
	Nada de modernistas brasileiros com seu manifesto pau-brasil
	Só poemas transmutados
	Poemas propriamente flor
	Ela não queria saber de flores mortas de Poe,
	Baudelaire, Augusto dos Anjos
	Ela só queria poemas transmutados
	Poemas propriamente flor
	E para ter um gran finale como na ópera, nas sinfonias, nos musicais
	Após a morte de Cecília seus amigos prepararam uma antologia
	E o título não poderia ser mais apropriado
	Flor de Poemas
	
	ESPAÇOPOEMA
	Eu percorro o espaço físico proposto pelo poema
	O espaço implícito
	Texturas variadas se sobrepõem à leitura paredes, muros, chão, céu, tudo nuvens, mares, rios, líquidos diversos envasilhados escorridos, derramados, libertos de conformidades
	É de todo incerto que a época evocada dê o tom que ilustra o poema funciona mais à guisa de cenário inconstante ao se modificar em
	demonstrações de maleabilidade até se transformar em espaço onírico
	O poema estabelece sua cor, cria desníveis, altera e alterna as horas e se declara atemporal condições climáticas desafiam a previsibilidade afastam as noções mais simplórias de claro e escuro
O poema captura o olhar interno do leitor penetra em regiões abissais busca a propriedade daquele momento vivo, liberto, anárquico o poema e sua trajetória o poema e sua memória todas as memórias o poema e sua história pleno de liberdade
	
	SALADA PAULISTA
	Salada paulista
	Macabra caipira
	Mulata sem cabeça
	Das histórias sem fim
	Das histórias sem pé
	Nem orelha e uma pá virada
	De crianças correndo
	Inocentes com medo do escuro
	Com medo do furo preto do tempo
	Do tempo em que a gente vive
	Do jeito que a gente não sabe
	Do jeito que a gente não cabe
	Nos cabos telefônicos
	Nos projetos faraônicos
	Em estilo mediterrâneo
	No centro desta cidade suja
	No centro desta cidade morta
	Neste domingo de verão
	Ensolarado
	Uns gatos pingando nos botequins
	Traçando a caipira
	Salada de sangue
	Raças e países
	Mistura geral
	Grana a granel
	Greve bagunça
	Breve vingança
	Capital do capital
	Capital progresso
	Salada paulista
	Eu te saúdo
	Inventora do bauru
	Sanduíche do meu país
	 
	LONGE PERTO
	Eu não escrevo pra mudar as pessoas
	E, talvez, nem mesmo para entretê-las
	Escrevo para tê-las comigo nesse espaço imprevisto para que juntos possamos passear entre os segredos guardados pelo momento
	
	Vamos imaginar o vasto e inabitado território das estrelas
	Lá, livre do alcance das lentes mais poderosas e dos olhos ansiosos por entender o mecanismo celeste
	Vamos nos deixar levar pra bem longe de nós mesmos
	Onde nenhum sentimento possa nos habitar
	E de lá observar o lento movimento do planeta
	Vê-lo girar e mostrar suas variadas faces
	Eta! mundinho besta!
	 
	BERNARDO VILHENA é poeta e compositor, fez parte do coletivo Nuvem Cigana, nos anos 1970, e já escreveu mais de 300 canções.
	Entre outros livros, é autor de Vida Bandida e Outras Vidas (Azougue Editorial, 2015) e Rio Iluminado (Arte Ensaio, 2013).
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