Postado em 29/06/2017
Neste semestre, entra em vigor um novo instrumento jurídico voltado para migrantes e refugiados no Brasil. A Lei de Migração promete mudanças positivas ante o crescimento de refugiados no país. Segundo levantamento feito pela Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), houve um salto de 966 solicitações de refúgio em 2010, para 28.670, cinco anos depois. A maioria dos pedidos vem da África, da Ásia e do Caribe. Quais os direitos reservados àqueles que pedem refúgio no Brasil por razões que violam os direitos humanos? Discutem o tema Lucinéia Rosa dos Santos, professora de Direitos Humanos dos Refugiados e Direito da Criança e do Adolescente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e as especialistas em Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Aline Maria Thuller de Aguiar (coordenadora do Programa de Atendimento a Refugiados da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro) e Débora Marques Alves (coordenadora do Setor de Integração Local da Cáritas).
INSTRUMENTOS DE RECONHECIMENTO
por LUCINÉIA ROSA DOS SANTOS
Ilustração: Marcos Garuti
A Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), adotada no ano de 1945, constitui o processo de internacionalização dos direitos humanos, iniciado no pós-guerra, com o intuito de coibir que os Estados cometam as atrocidades e total violação aos direitos humanos praticadas pelo nazismo, período este marcado pelo maior número de pessoas sem território, perseguidas e discriminadas.
Trata-se da reconstrução dos direitos humanos, processo pelo qual a ONU estabelece uma sistemática normativa de proteção desses direitos, com adoção ao maior número de instrumentos internacionais, como declarações, convenções e pactos de direitos humanos. Sendo assim, a principal ferramenta de internacionalização de direitos humanos adotados pela ONU deu-se em 10 de dezembro de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que consolida os princípios da Universalidade e Indivisibilidade dos Direitos Humanos.
No que se refere ao refúgio, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 14, disciplina o direito de asilo. Assim, à medida que os países reconheçam o disposto no referido Instrumento Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, se comprometem no reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana, dos direitos de liberdade, igualdade e solidariedade aos refugiados.
PROTEÇÃO JURÍDICA AO REFUGIADO
A Assembleia da ONU em 14 de dezembro de 1950, por meio da Resolução nº 428, adotou o Alto Comissariado das Nações Unidas, substituindo a Organização Internacional para os Refugiados (OIR), criada pela ONU no ano de 1946. O ACNUR, como órgão de proteção aos refugiados, tem como atribuição amparar os solicitantes de asilo e refúgio, apátridas, deslocados internos e repatriados. É uma das principais agências humanitárias, com plena vigência de seu funcionamento, atuando sempre na proteção e segurança de todo e qualquer indivíduo que esteja em situação de refúgio, buscando segurança para que tal indivíduo possa reconstruir sua vida em ambiente seguro.
ESTATUTO DOS REFUGIADOS
O Estatuto dos Refugiados adotado em 1951, por meio da Resolução nº 429 da Assembleia das Nações Unidas é o primeiro instrumento a trazer amplamente o conceito do que vem a ser refúgio, disciplinado em seu artigo 1º: o temor por motivos de perseguição de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Porém, na data de 31 de janeiro de 1967, fora editado o Protocolo Adicional ao Estatuto dos Refugiados, com o propósito de eliminar critérios de limitação, admitindo caracterizar como refugiados os que se encontrassem na mesma situação posterior à data de 1º de janeiro de 1951 e abrangendo, assim, novas categorias de refugiados.
É necessário fazer menção ao fato de que o mundo enfrenta uma das situações mais graves em matéria de refúgio, haja vista o número elevado de pessoas deslocadas de seu território, muito superior ao do período pós-Segunda Guerra, quando, por temor de perseguições religiosas, étnicas, violência contra mulheres, opiniões políticas e grupos sociais, bem como toda e qualquer forma de violação aos direitos humanos, muitos indivíduos resolvem sair de seu território em busca de uma condição de vida digna.
O Brasil, apesar de reconhecer todos os instrumentos de proteção aos direitos humanos dos refugiados, ainda assim não tinha plena efetivação interna de proteção aos refugiados que chegavam ao país, sendo estes muitas vezes acolhidos por entidades não governamentais, como a Cáritas, uma organização humanitária da Igreja Católica que tem por objetivos a promoção da defesa dos direitos humanos e a atuação social nessa área. Porém, com o advento da atual Constituição Federal, inicia-se a atuação do Poder Público na eficácia dos direitos dos refugiados, consolidada com a Lei 9.474/1997, disciplinando o refúgio no Brasil, com o conceito de refugiado embasado no Estatuto dos Refugiados da Nações Unidas de 1951 e no Protocolo Adicional de 1967.
Podemos afirmar que o Estado brasileiro trouxe uma das normas de maior eficácia ao refúgio, pois, por meio da Lei 9.474/1997, tem-se a extensão da proteção de refúgio, não apenas ao solicitante, mas também em relação ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, como também aos demais membros do grupo familiar que dele dependam economicamente, desde que se encontrem em território nacional. Outra inovação trazida pela legislação de proteção interna ao refúgio dá-se com o órgão de proteção aos direitos dos refugiados, denominado Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), o qual tem por atribuição analisar o pedido de refúgio, preparando os processos de requerimento e a pauta de reunião para a qual será convidado o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR –, com direito a voto, mas sem direito a voz.
É importante salientar que, na data de 24 de maio de 2017, foi promulgada a Lei 13.445, a qual institui a Lei de Migração. Como projeto de lei, foi aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado e muito elogiada por dispor da proteção aos migrantes na forma que disciplinava o artigo 1º, inciso I, ou ainda o artigo 4º, com menção ao direito de exercer cargo, emprego ou função pública, o que no meu entendimento limita o exercício de direitos como ao do trabalho aos estrangeiros, e neste caso aos refugiados. Porém, foram muitos os vetos feitos pelo atual presidente da República ao projeto de lei, como os artigos ora mencionados, o que no meu entendimento limita o exercício de direitos como ao do trabalho aos estrangeiros, e neste caso aos refugiados.
Vale ressaltar que a Lei 9.474/1997 em seu artigo 5º disciplina que o refugiado gozará de direitos e estará sujeito aos deveres dos estrangeiros no Brasil. Assim, a Lei 13.445/2017 aplica-se também aos refugiados. Em que pesem as críticas aos vetos feitos pelo presidente da República ao promulgar a referida norma, ainda assim é um instrumento de grande avanço em relação ao Estatuto do Estrangeiro de 1981, por tratar das condições migratórias no Brasil, observando as garantias da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, reafirmando o disciplinado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
LUCINÉIA ROSA DOS SANTOS é professora em Direitos Humanos dos Refugiados e Direito da Criança e do Adolescente na PUC-SP.
REDE DE PROTEÇÃO
por ALINE MARIA THULLER DE AGUIAR e DÉBORA MARQUES ALVES
Ilustração: Marcos Garuti
O marco jurídico do estatuto do refúgio no Brasil é dado, principalmente, pela Convenção sobre o Estatuto de Refugiados de 1951, pelo Protocolo de 1967, pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e, finalmente, pela Lei Brasileira de Refúgio (9.474/1997), que define como refugiado todo indivíduo que:
I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
III – devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
Tal instrumento normativo é importante no processo de definição e implementação dos direitos dos(as) refugiados(as) no Brasil, institucionalizando a responsabilidade do Estado Brasileiro para com essa população marcada pela dor da perda e da fuga, por motivos alheios à sua vontade, garantindo não somente sua proteção (não devolução e acesso à documentação), mas também sua integração ao país de acolhida.
Essa integração passa, necessariamente, pelo acesso aos direitos sociais, garantidos pelo Estado brasileiro por meio das diferentes políticas públicas (educação, assistência social, saúde, habitação, cultura, lazer, trabalho etc.).
Contudo, quando buscam tais direitos, os solicitantes de refúgio e refugiados que vivem no Brasil se deparam com políticas fragmentadas/segmentadas, em que cada área possui uma rede própria de instituições e/ou serviços sociais com pouca comunicação entre si e que muitas vezes não estão sensibilizadas para o tema das migrações e, especialmente, do refúgio, o que frequentemente dificulta a inserção dessa população e o atendimento integral de suas necessidades.
Para superação dessa fragmentação, conforme sugere a Constituição Federal de 1988, a gestão social vem exigindo uma renovação desse processo, com o investimento em modelos flexíveis em que a descentralização e a participação social sejam efetivadas, incluindo a participação da sociedade civil organizada nas ações e decisões que dizem respeito ao debate e ao encaminhamento das políticas públicas.
INTERSETORIALIDADE
Nesse cenário, destaca-se a importância de articular tais políticas setorizadas, em favor de um atendimento integral da população atendida, com ações pautadas na defesa dos princípios constitucionais da descentralização, participação social e intersetorialidade, ou seja, da articulação entre as políticas públicas por meio do desenvolvimento de ações conjuntas destinadas à proteção e promoção dos sujeitos sociais.
Nesse contexto, o Programa de Atendimento a Refugiados da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro (PARES/ CARJ) busca articular e integrar uma rede de proteção social que agrega organizações afins em torno do interesse comum, buscando promover conexão, vínculos, ações complementares, relações horizontais entre parceiros, interdependência de serviços, para garantir a integralidade da atenção a esse segmento social vulnerabilizado pelas questões próprias do refúgio e por outras questões sociais semelhantes às vividas pelos brasileiros.
Desse modo, o PARES/CARJ se apresenta como parte de uma rede de proteção, atuando na mediação entre solicitantes de refúgio e refugiados(as) e as políticas públicas brasileiras. Sua atuação não visa substituir as ações do Estado, mas possibilitar maior interlocução entre ambos.
Nessa direção, além de compor a rede por meio de uma atuação direta no atendimento à população refugiada (orientação e encaminhamento para políticas e serviços públicos e de organizações não governamentais), o programa também busca realizar ações para a ampliação dessa rede (por meio do trabalho de sensibilização de novos atores sociais).
ENTRAVES
Nosso trabalho consiste em buscar acesso igualitário a benefícios e direitos, levando em conta as especificidades da população atendida. Para isso, enfrentamos muitos desafios, como o desconhecimento da temática do refúgio; o desconhecimento da condição de sujeito de direitos dessa população; o preconceito por serem estrangeiros (e por isso “competirem” por políticas públicas e postos de trabalho com os brasileiros) e por serem refugiados(as), muitas vezes confundidos com foragidos. Ainda há dificuldades de comunicação (idioma) e de entendimento das diferenças culturais, e reduzida oferta de serviços, ante a grande demanda/necessidade – disputam entre si e com os brasileiros o acesso aos direitos –, entre outros desafios.
Dessa forma, atuamos na divulgação da temática do refúgio, seja em nossos contatos diários com instituições públicas e privadas, seja pela mídia em geral, no mapeamento, encaminhamento e acompanhamento dos(as) solicitantes de refúgio e refugiados(as) para os serviços da rede. Também buscamos realizar atendimentos conjuntos com os profissionais da rede, discutindo os casos, trocando experiências, saberes e propostas de atuação. Buscamos integrar efetivamente essa rede, atuando na avaliação, planejamento e elaboração de propostas para as políticas públicas, utilizando espaços legítimos para tal, como os conselhos, conferências, fóruns e comitês. Em outras palavras, a CARJ vem trabalhando para estar junto dos profissionais, governos e população em geral, nesses espaços coletivos, e incentivando a participação dos(as) refugiados(as) como sujeitos de direitos.
Essa atuação parte da premissa de que os(as) refugiados(as) devem ser reconhecidos(as) pelas instituições públicas como um segmento social com necessidades singulares para que processos de inclusão nas políticas sociais existentes sejam considerados, assim como atenção especial seja dada ao acesso e ao tratamento das questões que são cruciais para sua permanência e sobrevivência digna no território brasileiro. Defendemos que as dificuldades econômicas e sociais do país diante de sua população não devem ser um obstáculo à reflexão e à tomada de decisões a respeito dos refugiados(as).
Todavia, apesar de todo o avanço representado pela Lei 9.474/1997, ainda há muitos desafios para que uma cultura humanitária seja difundida na sociedade brasileira, demandando esforços perenes, por parte de todas as entidades envolvidas com a temática do refúgio.
Daí a importância do fortalecimento e da ampliação da rede feita por diversas parcerias, em especial com os entes públicos, tendo em vista sua responsabilidade e importância para a prestação de políticas, programas e serviços fundamentais para a oferta de acolhida digna e de condições de integração dos refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil.
ALINE MARIA THULLER DE AGUIAR é assistente social e mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social da UERJ, e coordenadora do Programa de Atendimento a Refugiados da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro.
DÉBORA MARQUES ALVES é assistente social e mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social da UERJ e coordenadora do Setor de Integração Local da Cáritas.
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