Postado em 20/06/2017
Imagine dois enredos. No primeiro, os papéis de gênero foram trocados em uma pequena sociedade: os homens passaram a ser responsáveis por cuidar da casa e dos filhos; e as mulheres por humilhar e assediar seus próprios maridos. No segundo, uma dona de casa entediada, presa em um casamento burguês sem amor, tenta se livrar do marido violento. As duas histórias parecem muito atuais, mas são enredos dos filmes: “Os resultados do feminismo” (França, 1906), de Alice Guy Blaché, e “A Sorridente Madame Beudet” (França, 1922), considerados filmes feministas pioneiros.
Na quarta edição do projeto Cinema Falado no Sesc Pompeia, as duas produções originalmente mudas ganham voz no experimento cênico “Sessão Muda, mas não Calada” dirigido pelo Coletivo Vermelha e encenado pelas artistas Denise Assunção, Karina Buhr, Georgette Fadel e Roberta Estrela D’Alva.
Voz como discurso político
Diálogos criados, trechos de textos, muita música e efeitos sonoros. O Coletivo Vermelha, em entrevista ao Sesc, explicou que o processo foi pensado como “uma releitura contemporânea e de manifesto aos antigos acompanhamentos musicais do cinema mudo”.
Alice Guy Blaché e Germaine Dulac estão entre as primeiras diretoras que se tem notícia com filmes que trazem questões profundas relacionadas à vida das mulheres. Iana comenta que o Coletivo e as artistas se surpreenderam com a atualidade temática de ambos os filmes e com os recursos narrativos usados pelas duas realizadoras. “Suas obras nos instigaram a propor intervenções cênicas que convidam reflexões e sensações. Não se fala muito isso, mas as mulheres tiveram uma enorme participação no início do cinema, experimentando, inovando e desempenhando os mais diversos papéis”.
Filme da fanpage PlayGround BR sobre Alice Guy Blaché.
O coletivo pesquisou os manuscritos originais de Dulac na Cinemateca Francesa para incorporar a voz musical ao filme "Sorridente Madame Beudet": "será uma espécie de releitura contemporânea e de manifesto aos antigos acompanhamentos musicais do cinema mudo." Iana conta que os ensaios se converteram em verdadeiros laboratórios de pensamento e criação, graças à potência das artistas Denise, Georgette, Karina e Roberta: "há partes um pouco mais cômicas e outras ganham um caráter mais solene. (...) imaginamos que Germaine e Alice estariam bem felizes se estivessem conosco hoje."
A luta é todo dia
O feminismo na visão do Coletivo Vermelha é "um movimento de desconstrução de padrões e relações de poder que foram inventadas e naturalizadas ao longo da história". O Coletivo propõe uma reflexão:
"Olhemos para nossa cultura: nossos mitos fundadores são binários, sexistas, racistas e violentos. Esta é a maneira que aprendemos desde pequenos a estar no mundo. Vivemos um dos momentos mais misóginos na história do país. Homens brancos e ricos decidem sobre a vida e o corpo das mulheres, das trans e dos próprios homens pobres. Medidas como a "bolsa-estupro" são levadas a sério por uma bancada reacionária, enquanto programas de conscientização de gênero são reprimidos nas escolas. Há uma inversão de valores. Enquanto se impuser o ponto de vista do privilegiado sobre a vida, não haverá subjetividade ou diversidade possível. Mas enquanto não houver subjetividade ou diversidade, haverá resistência e confrontação.
O que está em pauta quando falamos em feminismo não é apenas uma representação menos hierarquizada de gênero e raça. É uma reformulação das próprias narrativas da História.
Pensando concretamente na pergunta, para nós não existe incluir pauta do feminismo nas vidas e no trabalho como se fosse algo de fora para dentro. Ser mulher e tentar existir nesse mundo já é uma atitude de resistência. Como coletivo, sempre chamamos mulheres para nossos debates, mostras, oficinas, trabalhos. No nosso dia a dia estamos atentas para que as mulheres tenham seu direitos respeitados, tenham voz e sejam ouvidas. Para terminar, gostaríamos de propor que esta pergunta fosse feita aos homens: como incluem a pauta do feminismo em seu cotidiano? O que fazem para construir um mundo menos machista, menos misógino em casa, no trabalho, na rua?"
Sobre o Coletivo Vermelha
Coletivo de diretoras, roteiristas e montadoras formado por Manoela Ziggiatti, Lillah Halla, Caru Alves de Souza, Iana Cossoy Paro e Moara Passoni. Criado em São Paulo, em 2014, o coletivo se reúne periodicamente com a intenção de estudar e entender qual espaço as mulheres ocupam no meio audiovisual, tanto nos seus processos de produção e funções, como na forma em que a mulher é representada. Desde sua criação realizaram diversas ações nesse sentido, como o seminário “Quem tem medo das mulheres no audiovisual?” (no MIS São Paulo e Campinas), no início de 2016. No mesmo ano, organizaram a primeira palestra no Brasil da sueca Ellen Teyle (criadora do selo Bechdel) e criaram, no Festival Kinoforum, o Prêmio Vermelha - Spcine para um curta-metragem dirigido por mulher e que apresentasse uma narrativa e uma personagem mulher, desafiando padrões estereotipados de gênero. Este ano realizaram a mostra “Curta as Minas”, no Sesc Campo Limpo.