Postado em 30/05/2017
“Perdi o trem, nasci atrasada. Acho que queria ter nascido pelo menos uns 40 anos antes. Queria ter vivido na época do circo do meu bisavô João Alves, onde a grande atração era minha avó, o palhaço Xamego.”
Essa é a memória que Mariana Gabriel tem de sua avó Maria Elisa Alves dos Reis, a primeira palhaça negra do Brasil, figura na qual se espelha pelos exemplos de generosidade e força.
Maria Elisa nasceu em 1909, em uma família circense. Seu pai João Alves foi quem deu início à tradição do circo na família. Tornou-se famoso como palhaço e empresário, dono do Grande Circo Guarany, e era muito respeitado no meio circense. “Ele era palhaço, e naquela época só os donos de circo faziam esse papel”, revela Carlos Antônio Spindola, o palhaço Biriba, que trabalhou com João.
Antes de ser palhaça, Maria Elisa foi cantora ao lado de sua irmã Ephigênia, com quem formava¿ a dupla As Irmãs Alves. Juntas cantavam em programas de rádio, em busca do sucesso musical que nunca conseguiram. Já no picadeiro a história foi outra. Maria teve sua primeira chance de se apresentar em um momento difícil, quando a grande atração do circo da família, o palhaço Gostoso, interpretado por seu irmão Antônio Alves, ficou doente e precisou amputar as pernas.
No momento em que o circo estava sem seu principal número, Maria Elisa fez seu pai sorrir com as graças de Xamego e conquistou o papel na trupe. “Ela armou o cabelo, colocou sobre ele uma pequena cartola e fez graça, foi seu primeiro número”, comenta Daise Gabriel, filha de Maria Elisa.
A artista, ao se vestir de palhaço, usava uma maquiagem branca para não revelar sua verdadeira identidade. Maria Elisa sabia das dificuldades que enfrentaria por ser mulher, negra e palhaço. Daise, sua filha, cresceu convivendo ao mesmo tempo com as figuras da mãe e do palhaço. Pequena, não sabia bem como agir na presença de um ou de outro. “Com a minha mãe eu era dócil, mas com ele eu não sabia muito como me portar porque eu achava que poderia ser desobediente”, explica.
A figura da palhaça se popularizou no Brasil somente no início dos anos de 1980, com o surgimento das escolas de circo. “O feminino de palhaço não existia. Havia vários personagens que as mulheres representavam no circo, mas o papel de palhaço era reservado aos homens”, explica a historiadora e pesquisadora em circo, Ermínia Silva, reafirmando o pioneirismo e importância do trabalho de Maria Elisa no final do século 20.
Os espetáculos do Grande Circo Guarany mesclavam números circenses e teatrais e incorporavam outras companhias em sua trupe, como os Stankowich, os Tangarás e as famílias dos palhaços Arrelia e Pimentinha. A quantidade de artistas itinerantes era tão grande que era preciso fretar vagões de trem para que todos se deslocassem de uma cidade a outra.
A herança circense ainda é forte na vida da família Silva. Um trecho do livro Terceiro Sinal, de Dirce Militello, que conta a história do circo, inspirou Mariana Gabriel a gravar o documentário "Minha Vó Era Palhaço!", contando a vida de sua avó Maria Elisa. A escritora relata uma memória de infância que a deixou fascinada, foi quando viu o palhaço Xamego maquiado, num intervalo de cena, amamentando seu filho Aristeu.
Dirigido por Mariana Gabriel e Ana Minehira, o documentário é uma homenagem ao circo e a Maria Elisa Alves dos Reis, a primeira palhaça negra brasileira, que viveu o circo até seus 92 anos.