Postado em 30/05/2017
Ilustração: Marcos Garuti
1.
Machado de Assis acordou cedo naquele domingo de réveillon, pois sabia que apararia muitas carapinhas que adentrariam o novo ano apontando adiante, ao futuro. Ao se levantar, enfiou o pé esquerdo no penico, que estava cheio. Caiu de cara no chão e quebrou o nariz.
Machado de Assis saltou pocinhas que alagavam as ruas de Friburgo. Enquanto pulava, era saudado pelos concidadãos. “Bom dia, russo!”, as pessoas diziam. Machado de Assis era albino, e por isso todos o chamavam de “russo”. Ele estendia sua palma aos amigos num aceno branco e cheio de sardas.
2.
Machado de Assis chegou à barbearia na rua do Ouvidor e ergueu a porta corrediça. Depois, conferiu o carregamento de loção que chegara no dia anterior. Destapou o primeiro recipiente e cheirou-o longamente. A marca não era mais a mesma. Exalava noites mal dormidas, porém talvez fosse apenas seu mau humor a prevalecer.
Machado de Assis passara a noite escrevendo. Sua pele era tão alva que se tornava impossível saber o que iluminava mais, ela ou a chama do lampião.
É sempre difícil cheirar com o nariz quebrado.
3.
Machado de Assis recém-terminara de desinfetar a navalha quando surgiu o primeiro cliente do dia. Se o dia não fosse assim tão bom, aquele também poderia ser o último cliente do ano que se encerrava.
Era seu bom amigo, o sr. Mxyzptlk, que brandia um exemplar novo da Revista Brasileira. O sr. Mxyzptlk estava sorridente: “Como conseguiu esconder de todos? Só descobri agora, no último capítulo, que esta revista publicava um folhetim de sua autoria. Parabéns, dileto amigo!”
Enxugando as mãos, Machado de Assis lançou um olhar perplexo à revista sobre a penteadeira. As páginas abertas mostravam o título Memórias Póstumas de Brás Cubas. Logo abaixo, o nome do autor: Machado de Assis.
Quando o procurou, o sr. Mxyzptlk havia desaparecido.
4.
Enquanto picotava barbas e distribuía escovadas de talco nas nucas dos rapagões, Machado de Assis lamentava sua sorte. Sempre quisera ser escritor, e agora descobria – por acaso – que não precisava mais escrever, pois já existia outro Machado de Assis, este sim um escritor.
Voltou a estudar o retrato bico-de-pena de Machado de Assis. Era negro, ao contrário dele próprio, que era muito branco. Devia escrever de dia, ao contrário dele, que escrevia à noite. Se escrevia de dia, escrevia antes, permanecendo sempre adiantado. Machado de Assis decidiu que precisava mudar de hábitos.
Essa seria a sua resolução de ano-novo.
5.
Em casa, Machado de Assis foi recebido por seus sessenta e três filhos. Já sabia pela nota biográfica que o outro Machado de Assis não deixara descendentes até então. Todavia, ainda havia tempo, pois o outro Machado de Assis permanecia vivo. “Espero que não por muito tempo”, pensou Machado de Assis, coçando o cavanhaque.
Mudar de nome não era opção. Assassinato também não. Quem sabe mudar de cor? Se nenhuma resolução de ano-novo poderia garantir isso, restava-lhe convencer o outro Machado de Assis a ser barbeiro. De mesmo modo, teria de convencer-se a si próprio de que era verdadeiramente um escritor.
Essa era a parte mais difícil.
6.
À noite, enquanto admirava a queima de fogos de artifício na companhia de seus sessenta e quatro filhos, surgiu novamente o sr. Mxyzptlk: “Não eram sessenta e três filhos, dileto amigo? Quem é esse sexagésimo quarto aí?”, ao que Machado de Assis respondeu: “Acabou de nascer. Era pra nascer em fevereiro, mas pelo visto gosta de fogos de artifício e quis assistir aos festejos do réveillon”.
O senso de humor era a única característica comum entre o Machado de Assis positivo e o Machado de Assis negativo. Se não havia salvação para o caso, ao menos as gargalhadas eram em dobro.
Quando Machado de Assis notou, o sr. Mxyzptlk havia desaparecido. “Esse sr. Mxyzptlk e seus sumiços”, pensou Machado de Assis, concluindo que o outro Machado de Assis era que devia desaparecer.
7.
Depois de algum tempo, já com o nariz consertado, Machado de Assis reuniu os exemplares passados da Revista Brasileira e completou o folhetim Memórias Póstumas de Brás Cubas. Assim, pôs-se a lê-lo.
Ultrapassado o ponto final, Machado de Assis percebeu que era um gênio. Com isso, comprou mais exemplares da revista, dezenas deles, e os distribuiu por toda a cidade. Promoveu uma noite de lançamento. Autografou-os, fez dedicatórias. “A fulano, do Machado de Assis.” Como se diz, colheu os louros. Morreu aos sessenta e nove anos de idade, deixando sessenta e nove filhos, um para cada ano de vida. O que não deixava de ser misterioso, pois nunca teve mulher.
E assim foi a vida de Machado de Assis, mais ou menos.
Joca Reiners Terron é poeta, prosador e designer gráfico. Entre outros livros, é autor de Não Há Nada Lá (Ciência do Acidente, 2001) e Do Fundo do Poço Se Vê a Lua (Companhia das Letras, 2010).