Postado em 01/01/2002
Brasil discute caminhos para eliminar diferença entre negros e brancos
FLÁVIO CARRANÇA
A 3ª Conferência Mundial de Combate ao Racismo, realizada em Durban, na África do Sul, no final de agosto e início de setembro de 2001, trouxe para as páginas da grande imprensa nacional a discussão sobre os meios a serem utilizados para a superação das desigualdades existentes entre brasileiros negros e brancos. As chamadas políticas de ação afirmativa, entre elas a de fixação de cotas de participação para negros dentro de universidades, órgãos públicos e empresas privadas, passaram a ser discutidas pelo público em geral, ao mesmo tempo em que começaram a tramitar no Congresso Nacional projetos de parlamentares das mais diversas tendências ideológicas, com o objetivo de transformar em leis e colocar em prática essas propostas.
No Senado, um projeto de lei do senador José Sarney, do PMDB, estabelece uma cota mínima de 20% para a população negra no acesso a cargos e empregos públicos, à educação superior e aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies).
Na Câmara, um projeto do deputado Paulo Paim, do PT do Rio Grande do Sul, pretende criar um estatuto da igualdade racial, com medidas em diversas áreas, incluindo a fixação de cotas para negros no setor público e no privado, nas universidades públicas e privadas e ainda em programas televisivos, produções cinematográficas e peças publicitárias.
No estado do Rio de Janeiro, uma lei aprovada pela Assembléia Legislativa e já sancionada pelo governador Anthony Garotinho reserva 40% das vagas nas universidades públicas estaduais para negros e pardos. O autor do projeto, o deputado José Amorim, do PPB, informa que o percentual foi estabelecido com base na representatividade desses indivíduos na população fluminense, que em 1999 somavam 38,2% dos habitantes do estado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No âmbito do governo federal, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, lançou, em setembro de 2001, um programa de ações afirmativas em sua pasta. Segundo ele, uma pesquisa revelou que os negros ocupavam apenas 5% dos cargos em comissão, ou seja, eram poucos os que detinham postos de confiança e de mando. Para o ministro, um Estado que almeja a igualdade tem de dar o exemplo. Jungmann afirma que o ministério vai passar a treinar e capacitar as pessoas negras, além de implantar uma política de cotas, que pretende inicialmente destinar aos afro-descendentes 20% dos cargos de confiança e chegar a 30% até 2003, critério que será também observado em serviços terceirizados de qualquer nível. A exemplo de Jungmann, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello, decidiu adotar o sistema de cotas para negros na contratação de serviços terceirizados para o STF, reservando para eles 20% das vagas.
Essa posição, no entanto, não é compartilhada por todos os integrantes do governo. O ministro da Educação, Paulo Renato Souza, por exemplo, já se declarou contrário às cotas no ensino superior, embora favorável às ações afirmativas. Em entrevista concedida à imprensa, na época da Conferência de Durban, Paulo Renato disse que o importante é dar qualificação para que os negros entrem na universidade e que a cota só se justifica quando todas as pessoas têm condições objetivas de acesso a esse nível de ensino.
O professor Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e autor de livros sobre a questão racial no Brasil, define ações afirmativas como todas aquelas que procuram combater as desigualdades, raciais ou de outro tipo, criando condições vantajosas para a minoria prejudicada: "São ações que não se limitam a coibir a discriminação. As cotas são apenas uma possibilidade de ações desse tipo, que devem ser usadas como meta a ser atingida num período determinado, nunca como algo fixo, se não quisermos correr o risco de estipular tetos ou prejudicar outros grupos sociais". Segundo Guimarães, as ações afirmativas são a única maneira conhecida de se quebrar a inércia histórica, proveniente de séculos de privilégio negativo, discriminação e preconceito. "Se deixarmos a questão para ser resolvida pelo esforço sobre-humano dos negros, que procuram exceder todos os limites para ser considerados iguais, então se passarão outros séculos sem que as desigualdades raciais sejam corrigidas."
O início da mudança
As políticas de ação afirmativa foram implantadas pela primeira vez no mundo nos Estados Unidos, durante o governo Lindon Johnson, em meados da década de 1960, mas hoje são adotadas, com as adaptações necessárias, em países europeus, asiáticos e africanos. Joaquim B. Barbosa Gomes, professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), membro do Ministério Público Federal e autor do livro Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade, conta que elas foram concebidas inicialmente para solucionar a marginalização social e econômica do negro na sociedade norte-americana, tendo sido posteriormente estendidas às mulheres, a outras minorias étnicas nacionais, aos índios e aos deficientes físicos. Sua introdução representou uma mudança de atitude do Estado, que antes, em nome de uma suposta neutralidade, aplicava suas políticas governamentais indistintamente, ignorando fatores como sexo, raça e cor. De acordo com essa nova postura, o Estado passa a levar em conta tais fatores no momento de admitir seus funcionários, quando regula a contratação de empregados por outras instituições ou na oferta de oportunidades de acesso aos estabelecimentos de educação.
Ivair Augusto Alves dos Santos, assessor especial da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, diz que, no Brasil, o tema das cotas e ações afirmativas foi colocado pela primeira vez pelo governo federal em 1995, com o lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos, mas que sempre gerou uma reação contrária muito grande. Segundo Ivair, a situação mudou um pouco em 2001, com a realização da 3ª Conferência Mundial de Combate ao Racismo. De acordo com ele, o processo de organização desse evento demonstrou haver consenso entre os negros em torno da idéia de que as ações afirmativas são fundamentais para a correção de algumas desigualdades que perduram por décadas, o que acabou resultando na inclusão dessa proposta no documento apresentado pela delegação brasileira em Durban.
Mas, se praticamente há consenso na comunidade negra quanto à necessidade de cotas e ações afirmativas, não se pode dizer o mesmo em relação ao restante da população brasileira. Uma enquete, realizada durante o mês de outubro de 2001 no site da empresa de consultoria Boucinhas & Campos, para saber a opinião dos internautas sobre a implantação de cotas para negros e deficientes nas empresas e nas universidades, revelou que 56,5% das pessoas são contra esse tipo de medida. Desses, 49,5% entendem que as cotas não impediriam a discriminação, e 7%, mesmo sendo contra, acreditam que elas teriam alguma eficácia. Dos 43,5% favoráveis às cotas, 32% acham que elas seriam uma maneira de impedir a discriminação. Os 11,5 % restantes são céticos: acham que as cotas não acabariam com o preconceito contra negros e deficientes nas universidades e no mercado de trabalho.
Paulo Roberto Nicolli, diretor de marketing da Boucinhas & Campos, interpreta o sentimento dos votos contrários: "Estão buscando solução para um problema cuja origem, no meu entender, é o ensino fundamental, que precisa ser melhorado. Não se pode abrir exceção para o negro. Admitindo que haja discriminação, se agirmos dessa forma (instituindo cotas), como fica a situação dos brancos pobres? E mesmo que se adotasse esse procedimento para negros e pobres haveria injustiça, porque as pessoas não têm o mesmo preparo. As cotas permitiriam a entrada dessas pessoas em escolas federais e estaduais, que são centros de referência, mas, depois, como elas iriam competir no mercado de trabalho?"
Definição controversa
Em editorial publicado em 23 de agosto de 2001, no qual comenta o documento oficial levado pelo Brasil à Conferência de Durban, o jornal "Folha de S. Paulo", que tem seguidamente denunciado a existência de racismo no país, se manifestou contrário à criação de cotas. Segundo o texto, a medida equivale a reparar uma injustiça criando outra. "O combate às diferenças socioeconômicas entre brancos e negros não pode levar à suspensão, ainda que temporária, do sistema de ingresso na universidade com base no mérito. Não bastasse essa grave distorção de princípio, as políticas de ação afirmativa com cotas raciais esbarram em sérias dificuldades práticas. Como definir o negro no Brasil? A menos que se queira reeditar a nada enaltecedora experiência de criar órgãos de Estado especializados em classificação racial, não há meio de dizer quem é o quê. O IBGE, por exemplo, utiliza o critério da autodefinição, que no fundo é o único democrático. Se um branco disser ao recenseador que é negro, assim será considerado pelo instituto. O que impediria alguém de declarar-se negro para ter acesso a cotas?"
O professor Antonio Sérgio Alfredo Guimarães contesta a validade da afirmação de que ninguém sabe ao certo quem é negro no Brasil que, segundo ele, é a principal objeção levantada pelos que se opõem às políticas de ação afirmativa. "Se isso fosse verdade, por que estaríamos falando em desigualdades raciais?", indaga. Em sua opinião, o medo de que as pessoas se definam como negras apenas para se beneficiar dessas políticas não parece assentado em evidências fortes, ao contrário, pressupõe que não existam meios de montar um sistema eficiente de registro de identidade racial ou que não seja possível adotar políticas com alvos bem demarcados, como, por exemplo, favorecer os alunos da rede pública que se definam como pardos ou negros, ou ainda alterar algumas regras de competição, flexibilizando o meio de acesso à universidade, como já vem ocorrendo.
Outro professor, Hédio Silva Júnior, advogado e diretor executivo do Centro de Estudos das Relações de Trabalho (Ceert), ironiza a idéia de que não é possível definir quem é negro no Brasil: "Sempre que foi para discriminar, as pessoas nunca tiveram dúvida sobre quem é negro e quem é branco. Agora, quando se discutem políticas de inclusão, surge esse debate falso". Em sua opinião, trata-se de falácia, porque as estatísticas revelam que, independentemente da gradação cromática da pele, a pessoa é tratada como negra e discriminada. Quem tem menos melanina não sofre menos discriminação. No limite, é tratado como negro. Consultor da comissão criada na Câmara Federal para estudar o Estatuto da Igualdade Racial, proposto pelo deputado Paulo Paim, Hédio sugere que seja adotado como critério para definição da raça o cadastro nacional de identificação civil, a carteira de identidade.
No livro Racismo e Anti-Racismo no Brasil, publicado em 1999, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães classificava como incipiente a discussão sobre políticas públicas com o objetivo específico de beneficiar os afro-brasileiros. Agora, o professor vê progressos no debate: "Acho que já avançamos em reconhecer o problema e discuti-lo publicamente. No entanto, falta orientação ao debate, pois as pessoas são obrigadas a se posicionar contra as cotas ou a favor delas, como se o problema pudesse ser esgotado dessa maneira". Em sua opinião, é preciso que as universidades brasileiras passem a conhecer melhor sua responsabilidade na reprodução das desigualdades raciais no país. "Tenho certeza de que, se assim o fizerem, chegarão a definir políticas de correção e de compensação que saiam do falso dilema das cotas", completa.
Hédio Silva Júnior também faz um alerta a esse respeito: "Um equívoco que prevaleceu e ainda domina a discussão sobre ação afirmativa é que a rigor ela é confundida com cota, quando na verdade é um gênero do qual a cota é espécie". Segundo ele, existem medidas processuais, propostas de que a Lei de Licitação estimule as empresas concorrentes a adotarem um programa de igualdade, e diversas outras. A cota é apenas uma delas, a mais extrema, uma medida de força. Por essa razão, devido a seu impacto, tem impulsionado todo o debate sobre a questão. "Quando se pensa em todas as possibilidades de intervenção do Estado nas relações econômicas, em serviços públicos como ensino, saúde, e elas se revelam insuficientes, a cota cabe, sim, como uma das proposições, e não a única", acrescenta.
Lucrando com a diversidade
Um dos espaços sociais onde a discriminação de raça ou gênero, idade ou condições físicas mais se manifesta é no interior das empresas.
No caso dos negros, um imaginário social negativo, calcado em estereótipos e preconceitos, influencia na avaliação do seu potencial e no julgamento de suas habilidades, colaborando na definição do lugar que ocupam no trabalho. Quem faz essa afirmação é Maria Aparecida Silva Bento, mestre em psicologia social e coordenadora do Ceert. Segundo ela, é no cotidiano do trabalho que a segmentação racial se mostra mais evidente. "Nenhuma empresa brasileira declara por escrito que não aceita negros para cargos de chefia. No entanto, gerentes, chefes, encarregados e selecionadores de pessoal, no dia-a-dia, muitas vezes sem refletir e nem sempre com a intenção de discriminar, utilizam regras que acabam por reforçar a situação de desigualdade no Brasil", diz ela.
Aparecida, que desde 1995 vem desenvolvendo programas de diversidade em instituições, trabalha atualmente em um projeto que pretende medir quanto políticas mais democráticas contribuem para a mobilidade dos negros no interior das empresas. Ela lembra que um dos problemas nessa área é que os treinamentos não atingem os cargos que os afro-descendentes ocupam. "Treina-se mais quem já está no ápice. O lugar onde ficam as negras e os negros não recebe investimento." Por isso, o objetivo do trabalho que Aparecida desenvolve é fazer um diagnóstico da situação e da trajetória dos negros dentro das empresas, a fim de estimular a implantação de políticas de diversidade, como a opção por novas fontes de recrutamento. O que implica perceber, por exemplo, que são pouquíssimos os afro-descendentes em centros de excelência como a USP, ou que exigências como inglês fluente dificilmente serão atendidas por quem cursou uma escola pública da periferia.
Existem, no entanto, empresas que já se preocupam com esse tipo de problema. São, em geral, organizações norte-americanas que sofrem pressões de suas matrizes para que implementem políticas de diversidade, um outro nome para ação afirmativa.
Aparecida observa que essas políticas costumam beneficiar primeiro deficientes físicos e depois mulheres. Quanto aos negros, ela afirma que, apesar da importância do problema, tendo em vista o peso populacional desse segmento, a implementação das políticas costuma chocar-se com a resistência branca, sempre escudada no discurso da competência.
Outro especialista na área de recursos humanos, o professor Sigmar Malvezzi, da Faculdade Getúlio Vargas de São Paulo, afirma que, ao longo da história, a seleção de pessoal sempre foi um mecanismo através do qual se dá a discriminação. "Por volta de 1967, quando eu fazia seleção de pessoal, embora não estivesse escrito, era proibido contratar mãe solteira", conta ele. Malvezzi, porém, considera que a situação mudou, e para melhor. "Agora a regra geral é que a empresa precisa de profissionais que agreguem valor, o resto é secundário. E isso tem aberto espaço para o universo feminino. Basta olhar, por exemplo, o número de mulheres que ocupam cargos em bancos. E mesmo em relação aos negros e outras raças, o espaço se ampliou, não por amor à raça, mas pela busca de gente que agregue valor", acrescenta.
Já José Cláudio Mota, gerente da marca Levis no Brasil, afirma que o que fez aumentar a existência de políticas de diversidade no âmbito empresarial nos últimos anos foi o fato de que a aceitação da marca tornou-se um valor importante. "Hoje existem empresas que têm políticas de contratação de deficientes, e isso ajuda a construir a marca. Além disso, a diversidade diminui as tensões internas, o que pode favorecer a produtividade, já que atualmente há uma busca incessante por competitividade."