Postado em 26/04/2017
Marina Herrero, técnica da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc conversou com Eduardo Viveiros de Castro, que lança uma nova edição da sua pesquisa: Araweré: um povo tupi da Amazônia, pelas Edições Sesc.
Marina: Como os Arawetés apareceram na tua pesquisa? Eles te contaminaram de alguma forma, na tua construção como pessoa, na tua experiência de antropólogo?
Viveiros: A primeira vez que fui aos Araweté foi em 1981. Nessa época eu já tinha passado um tempo junto à três outros povos indígenas: primeiro nos Yawalapitis, no Alto Xingu (no Parque do Xingu), depois no Colina, no Alto Purus (Acre), e depois um breve período, também, nos Yanomamis, na Serra dos Surucucus (Roraima).
Acabei encontrando os Arawetés, digamos assim (e vice-versa), porque eu estava fazendo a minha tese de doutorado, procurando trabalhar com um grupo indígena pouco conhecido, que tivesse pouco contato. Na época, os Arawetés tinham apenas cinco anos de contato oficial com o estado brasileiro, através da FUNAI, e então eu fui pra lá. Foi no momento em que a ditadura estava começando a declinar, mas continuava forte, sobretudo na FUNAI, que era povoada por coronéis e capitães, vários militares ligados à ditadura, ligados ao serviço de informação; levamos - eu e minha então esposa - mais ou menos um ano e meio para conseguirmos autorização para entrar na área, pois éramos vistos como suspeitos (todo mundo era visto como suspeito). Naturalmente antropólogos eram vistos como comunistas, maconheiros e perturbadores da ordem, e queriam ver o que estava acontecendo, sendo testemunhas do que acontecia na Amazônia, no grande projeto de devastação - iniciado no período da ditadura -, a construção da Transamazônica, etc.
Os primeiros contatos dos Arawetés, cinco anos antes, foram traumáticos. Eles moravam nas matas, no meio da região entre o Xingu e Bacajá, e estavam sendo acossados por outro grupo indígena - os Paracanãs. Eles já haviam tido várias escaramuças com seringueiros, com caçadores de peles, com brancos... mas, no momento do conflito com os Paracanãs, eles acabaram indo para uma colocação de seringueiros, uma pequena habitação na margem do Xingu. Lá, eles foram contatados, pela primeira vez, pela FUNAI, em 1976. Por uma decisão desastrosa, a FUNAI resolveu levar os Arawetés para uma caminhada pela mata da região da beira do Xingu, precisamente para um posto de atração que eles haviam construído no Alto Ipixuna.
Foi uma caminhada que durou cerca de 20 dias e os Arawetés, que já estavam doentes (pois assim que tiveram contato com os beradeiros - como são chamados os moradores brancos da margem do Xingu - eles imediatamente foram contaminados por gripe e conjuntivite infecciosa), tiveram um fim trágico: dezenas morreram no caminho.
Marina: Eu encontrei no seu livro, na primeira edição, que foram 77 pessoas que desapareceram na caminhada, que morreram entre a caminhada e a chegada ao posto velho.
Viveiros: Esse foi um dado que eu tirei de um diário feito por um sertanista que, se não foi ele que conduziu o grupo na caminhada, foi o que administrou a chegada dos Arawetés na primeira aldeia depois do contato. Quando cheguei no Ipixuna, os Arawetés estavam divididos em duas aldeias: uma grande e uma pequenininha. Ainda enquanto eu estava lá, essa pequena mudou-se para a maior, onde estava o Posto da FUNAI, a enfermaria e outros equipamentos, que a FUNAI sempre instala nos postos indígenas. Desta vez, fiquei por pouco tempo - talvez dois meses - mas voltei em 82, ficando praticamente o ano todo, quando uma série de ataques de malária me obrigou a deixar a área. Depois disso eu voltei várias vezes - mas a minha tese de doutorado foi escrita a partir da primeira experiência que tive.
Os Araweté eram um grupo muito diferente dos que eu havia conhecido - os Yawalapitis do Xingu, os Colinas dos Purus e os Yanomamis. Primeiro, porque era um povo com muito pouco contato; e tanto eu estava interessado neles, quanto eles estavam interessados em mim (interessados nos brancos, em descobrir como eram os brancos). Então eu fazia perguntas pra eles e eles faziam perguntas pra mim.
Marina: E eles continuam assim. Quando fui lá, eles me invadiram, sentei no chão e as crianças vieram e fizeram um monte de perguntas, foi um interrogatório, que durou vários dias!
Viveiros: Uma coisa que me impressionou, quando eu voltei aos Arawetes (a última vez foi em 2013, se não estou enganado) talvez em 2010, a população passou de 135 para 400, eu creio. Praticamente todas as crianças daquela época hoje são os adultos que são o, digamos assim, grupo maduro que toma conta dos assuntos políticos de todos eles hoje. E os adultos daquela época, muitos já faleceram, outros já estão bem velhinhos. Quando cheguei lá, os mais jovens, as crianças mais novas já falavam português; os mais velhos não falavam nada, então eu tive que ir aprendendo a língua, fui obrigado a aprender a língua, o que foi muito bom, porque quando você vai fazer um trabalho antropológico junto à um povo que fala português fluentemente - e fala a própria língua também - é muito difícil aprender a língua nativa porque a tendência é, como eles falam português melhor do que você fala a língua deles, você acaba falando com eles em português o tempo todo e não aprende a língua deles. No caso dos Arawetés eu fui obrigado a aprender a língua deles, mesmo aos trancos e barrancos, com a ajuda de gramáticas de outras línguas tupis, de vocabulário de outras línguas tupis.
Os Arawetés me surpreenderam pelo sistema, eles são extremamente calorosos, têm um senso de humor muito desenvolvido, e gostam muito de proximidade corporal, de abraçar, de ficar junto; e isso foi muito importante porque eu passei boa parte do meu trabalho de campo junto à eles sozinho. Então, você ficar sozinho num lugar onde as pessoas estão distantes de você é muito deprimente, e no caso dos Arawetés eu nunca senti isso, pois eles estavam sempre perto e sempre foram muito generosos, me acolheram com absoluta hospitalidade. Eu dividi minha comida com eles, eu comi com eles... Não cheguei a virar Araweté de forma alguma – não tinha nem competência, nem forma física para isso – mas cheguei a participar da vida deles, na medida das minhas forças, e foi assim que eu vivi lá e, a partir disso, escrevi minha tese de doutorado em antropologia.
A tese foi escrita em 84, ou seja, já tem 33 anos. Publicada em 86, a tese era um calhamaço imenso, muito técnica, feita para ser lida por antropólogos. Quando estávamos começando o Instituto Socioambiental, que é uma ONG da qual eu sou um dos sócios-fundadores – e estávamos pensando a lutar pela demarcação das terras dos Arawetés, juntamente com as terras dos povos adjacentes (Paracanãs, Assurinis, Xikrin). Por volta do fim dos anos 80, o Carlos Alberto Ricardo e eu começamos a pensar numa campanha para a demarcação de terras. Nessa campanha fizemos um vídeo, com o cineasta Murilo Santos, fizemos uma exposição de fotografias e eu escrevi, como parte dessa campanha, uma versão resumida, simplificada – tirei todo o jargão técnico - do livro, que é a origem desse livro, reeditado agora pelo Sesc.
Em 95, oficialmente conseguimos que o governo demarcasse as terras, graças à uma doação da Prelazia do Xingu, do Dom Erwin Krautler, uma doação de dinheiro vindo da Áustria. A demarcação física do território, com marcos territoriais, é um trabalho caro, complicado e demorado. Então, na verdade, esse processo só se completou, com sua homologação, após esse processo de demarcação física.
Esse livro, como eu disse, foi escrito originalmente em 92, mas em 99 foi reeditado em Portugal, por ocasião de uma grande exposição que foi feita sobre os índios brasileiros, numa edição um pouco mais bem cuidada – era o mesmo livro, eu apenas atualizei alguns dados demográficos, etc. A partir do final dos anos 90, eu viajei pro exterior e fiquei muito tempo fora, então perdi o contato com os Arawetés por muito tempo. Tentei, por volta de 2001, retomar o contato com eles, não diretamente, porque eu já não estava em condições de saúde de retomar uma pesquisa com eles, uma estadia longa com eles; tentei então que alunos meus começassem, me representassem no sentido de continuar a trabalhar com os Arawetés. Mas, naquela época, por volta de 2001, a situação estava diferente, porque missionários evangélicos tinham conseguido entrar na área. Nós nos opunhamos firmemente à presença dos missionários evangélicos, porque o objetivo deles é evidentemente higienizar os índios e convertê-los ao cristianismo, e aí tudo o que se segue: acabar com os costumes que eles consideram pecaminosos - como beber cerveja de milho, mulheres andarem de seio exposto, e todas essas coisas. Com a entrada deles na área, após cair nas graças de um encarregado da FUNAI, meus alunos não puderam mais entrar na área, encontrando todo o tipo de dificuldade. Isso durou até por volta de 2010, quando mudou a administração da FUNAI e, consequentemente, várias coisas mudaram. Finalmente consegui que dois alunos da graduação, o Guilherme Orlandini Heurich e a Camila de Caux, fossem trabalhar com os Arawetés e mantivessem, assim, de certa maneira, a minha presença lá.
Quando o Guilherme e a Camila foram ao encontro com os Araweté, eles já estavam divididos em cinco/seis aldeias; então cada um ficou um tempo em cada uma delas, aprenderam a língua e continuaram meu trabalho 30 anos depois. Foi uma oportunidade rara de ter uma visão de quando eles tinham cinco anos de contato com os brancos e depois com 35 anos de contato. Quando decidimos lançar outra edição do livro, foi fundamental que tivéssemos não apenas aquele livro inicial, mas um livro que o completasse. Então esse livro foi escrito à seis mãos, por três autores. O objetivo dele - isso é um ponto muito importante a dizer - é que já poucas etnografias para o público não especializado. Normalmente, existem os livros escritos de antropólogos para antropólogos, os livros infantis e livros altamente técnicos. E há um grande vazio entre eles - não tem nada para o público não especializado, aos interessados nos índios brasileiros que não pertencem à Universidade, Academia ou profissão. Um livro que poderia ser lido no ensino médio, por exemplo. E esse foi o meu objetivo: escrever um livro que pudesse ser lido por pessoas de 16, 17 anos em diante e para o qual nao fosse preciso nenhum saber especializado. Então é uma etnografia que podemos chamar de popular, no sentido não pejorativo da expressão, uma etnografia que pode ser lida por qualquer pessoa, uma descrição de um modo de vida de um povo indígena que pode ser lida por qualquer pessoa, e que permite então cobrir um espaço na nossa produção sobre o que foi escrito dos povos indígenas,]; que não é apenas jornalístico, porque derivou de um trabalho de campo de somar o meu junto com o do Guilherme e junto com o da Camila. Ao todo, algo de 4 anos de convivência com os Arawetés, separados por 30 anos de diferença. Então, acho que é um livro que tem um lugar um pouco à parte, um pouco singular, dentro da produção sobre os índios brasileiros. É um livro para um público nao indígena. É um livro escrito para os brancos, para que os brancos conhecam um pouco da vida de um povo indígena muito peculiar, muito característico.
Marina: Mas deve representar algo importante pra eles também, deve ser relevante, porque a gente mostrou o livro antigo quando estivemos lá (a Camila, eu, mais o pessoal) e eles ficaram muito envaidecidos, muito contentes de se ver.. não sei se eles tem uma visão do que isso pode significar pra sociedade deles.
Viveiros: Eu fico muito satisfeito, fico muito comovido com isso, na verdade, porque durante muito tempo costumava-se dizer que os antropólogos vão trabalhar com os índios só porque querem ficar ricos, vão fazer a carreira deles e isso não adianta nada para os índios, só adianta para o antropólogo; na verdade é graças ao trabalho de muitos antropólogos que os povos indígenas inclusive estão descobrindo suas tradições esquecidas, porque teve gente lá no começo do século – em outros povos – que escreveu coisas sobre a vida deles, escreveu a vida deles no começo do século XX, e coisas que foram desaparecendo por conta da ação missionária, por conta da invasão capitalista, por conta da pressão sobre eles, e agora nesses livros eles encontram um pouco a enciclopédia da história deles, história que eles podem recuperar.
Esse livro pode servir para os Arawetés pra isso, ainda que, uma coisa que me surpreendeu lendo os trabalhos do Guilherme e da Camila, escritos 30 anos depois do meu, foi como na verdade os Arawetes mudaram muito pouco, apesar desses 30 anos, durante os quais eles foram intensificando fortemente suas relações com a sociedade dos brancos. Apesar disso, diferentemente talvez de vários outros grupos da região, os Arawetés tenham uma resiliência cultural muito surpreendente, muito forte; é um grupo que não perdeu a língua, muito pelo contrário, é um grupo que manteve praticamente tudo aquilo que eu tinha visto em 1981. É claro que hoje todos os jovens falam português, houve mudança no vestuário, no corte de cabelo, etc., mas eles continuam com suas instituições centrais existindo, como xamanismo, como os rituais, as festas, seus sistemas de relações sociais, tudo isso continua em pleno funcionamento.
Eles estão agora com todos os povos do Xingu passando por um momento traumático e devastador – que foi a construção da Usina de Belo Monte, que modificou toda a paisagem social, humana e ecológica do Vale do Xingu. Ainda que eles estejam longe da barragem, a terra deles, na verdade os efeitos da construção de Belo Monte, atingiram os Arawetés por conta de ações do consórcio construtor, que envolveu a entrada maciça de chantagem monetária em cima de todos os povos indígenas dessa região.
Houve todo um processo de assistencialização dos grupos indígenas, cujo objetivo suposto é mitigar os impactos negativos que a obra de Belo Monte iria provocar – que está provocando e que vai provocar. Mas essa ações de mitigação ou de compensação são parte do impacto, elas não são compensação, mas agravam o impactoporque elas introduzem a economia monetária diretamente aos grupos indígenas.
Essas ações estimulam a frequência dos Arawetés em Altamira, e portanto a exposição deles à toda sorte de risco, de perigos e abjeções características da nossa sociedade; com isso, os Arawetes estão, como todos os povos da região, numa situação extremamente frágil. Os Arawetés, pelo que pude perceber, desses povos todos, são os que estão, de certa maneira, se mantendo menos modificados, menos perturbados por toda essa avalanche de dinheiro, de gente, de barco, de tudo o que está chegando em Altamira e em toda a região do Médio Xingu; mas não se sabe quanto tempo vai permanecer assim, quanto tempo a sociedade Araweté vai se manter como uma sociedade indígena autônoma – autônoma no sentido radical da palavra, que tem seu próprio governo, governo social, governo cultural, tem suas próprias normas, próprios costumes, suas próprias crenças.. não se sabe quanto tempo isso vai durar.
Por isso esse livro, de certa forma, é um documento que é um monumento que eu ofereço aos Arawetes. Nós três estamos oferecendo aos Arawetés, sobretudo aos filhos dos adultos de hoje, para os filhos dos filhos dos adultos de hoje, pra que eles possam se lembrar da vida deles como era há 30 anos atrás, como é agora e que daqui há 30 anos isso possa ser lido por outras pessoas. E espero que eles continuem não muito diferentes do que eles são agora. Então o livro tem essa intenção; ele foi escrito para os brancos, mas ele tem um valor para os índios – espero que ele tenha um valor para os Arawetés. Um valor de mostrar que os brancos sabem quem eles são, que eles podem se ver nesse livro e podem mostrar, de certa maneira, quem eles são, podem mostrar aos brancos da região, que normalmente são altamente racistas, altamente antiindígenas, que eles são valorizados pelos brancos de longe.
Marina: Como um documento de identidade pra eles também, tipo “estes somos nós”, porque o explica livro todas as facetas da vida deles.
Viveiros: Claro, na medida das nossas competências. Mas não sei como esse livro será lido daqui há 20 anos pelos Arawetés, que então já serão letrados e capazes de ler o livro, criticá-lo e corrigí-lo. Mas é pra isso que os livros são escritos: para que as gerações futuras os leiam e possam julgá-los.
Marina: A missão é essa: é devolver pra eles um tanto que a gente pôde aprender e caminhar com essa forma deles de estar no mundo. Porque é muito interessante.
Viveiros: Você me perguntou como eles tinham me afetado. Eu diria que eles me tornaram uma pessoa melhor, no sentido de que aprendi que é possível viver sem muita coisa que consideramos como absolutamente essencial, não só no ponto de vista de objetos, de técnicas e coisas parecidas, mas que é possível viver bem num mundo muito mais simples, e de que a Amazônia é um lugar bom de se viver quando você não a destrói. Então eu aprendi muita coisa, eu me tornei uma pessoa mais simples, mais simples nesse sentido, como se diz, menos citadina, menos urbana, e, de certa maneira, eles me fizeram descobrir um outro lado do Brasil que talvez seja o lado bom do Brasil, o lado que ele próprio não conseguiu destruir completamente.
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