Postado em 30/03/2017
Referências do cinema, música, artes visuais e outras linguagens artísticas alimentam a tessitura de livros tanto na forma quanto no conteúdo
Foto: Divulgação Sesc Ipiranga
O filme 8½, de Federico Fellini, a música de John Cage e João Gilberto e a interpretação de Ritos de Passagem, obra de arte da Bienal de 1996. Essas foram, respectivamente, as principais influências de três obras da literatura brasileira concebidas na segunda metade do século 20 e início dos anos 2000: Zero (1974), de Ignácio de Loyola Brandão; O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982), de Sérgio Sant’Anna; e Eles Eram Muitos Cavalos (2001), de Luiz Ruffato. Assim como nesses livros, outros exemplos da literatura contemporânea revelam como diferentes linguagens artísticas se tocam e podem deixar marcas nas páginas de um livro.
Há diálogo entre diferentes linguagens desde que a arte existe, mas só a partir do século passado essas intersecções passaram a ser mais intensas e se tornaram uma marca da atualidade. “Um exemplo muito significativo, e que ilustra bem esse movimento, é o apogeu dos quadrinhos, linguagem que pode ser definida como um misto de literatura, artes visuais e cinema”, observa Fernando Lima, técnico de programação do Sesc Ipiranga, onde ocorre a exposição Contaminações (ver tópico abaixo - Contágio criativo), sobre obras brasileiras contemporâneas influenciadas por linguagens artísticas distintas. “O momento em que essas trocas ganham força é no pós-guerra, com influência da estética pós-moderna e seus ‘subprodutos’, como a pop-art.”
No caso da produção literária contemporânea, há diversas referências vindas de outras linguagens. Escritores como David Foster Wallace, Patty Smith, Julio Cortázar, Harumi Murakami, Antônio Xerxenesky e André Sant’Anna são exemplos de autores que se alimentaram de universos fora da literatura. “Esses contágios entre as artes se dão tanto na forma quanto no conteúdo. Cortázar, por exemplo, com uso preciso da linguagem, capta momentos e faz de muitos de seus contos perfeitas fotografias. Xerxenesky, por sua vez, insere elementos de outras artes, especialmente elementos pop, para construir sua narrativa”, ressalta Fernando.
A história dos invisíveis
No caso de Eles Eram Muitos Cavalos, livro de Luiz Ruffato composto de 70 microcontos, em que retrata instantâneos da cidade de São Paulo e de anônimos que a habitam, o mote veio por meio de uma visita à Bienal de São Paulo, em 1996. “Quando fui para a faculdade em Juiz de Fora, e comecei a ler literatura brasileira com um pouco mais de atenção, percebi que ela não tinha como personagens pessoas de classe média baixa. Comecei então a pensar na possibilidade de escrever sobre isso. Os anos se passaram, e eu não sabia como tratar do tema, até que em 1996, quando vi a obra do Roberto Evangelista na Bienal, tive uma leitura que me fez perceber a maneira como eu poderia escrever sobre isso”, conta Ruffato.
A instalação Ritos de Passagem, de Evangelista, reunia mil caixas de sapatos, dois mil sapatos gastos e cinco pedras de lioz retiradas de uma calçada da cidade de Manaus. “Para mim, aquilo significava que aqueles calçados tinham uma história. Percebi que no meu livro eu teria que percorrer esse caminho, em uma tentativa de reconstruir a história de pessoas que são invisíveis”, lembra o escritor, para quem a literatura é sinônimo de diálogo. “A literatura é um diálogo constante com a vida. Como a arte é uma tentativa de reconstruir a vida, todas as artes e todos os fenômenos artísticos me interessam e influenciam direta ou indiretamente. O cinema, as artes plásticas, o teatro, enfim, toda linguagem artística certamente faz parte e acaba transparecendo na obra literária.”
Como três livros brasileiros escritos entre a década de 1970 e os anos 2000 beberam na fonte de outras artes
Zero
Ignácio de Loyola Brandão (1974)
A maior referência do livro Zero vem de 8½ (1963), do diretor Federico Fellini, filme que mistura na tela diferentes planos – o da realidade, o da fantasia, o da memória e o do sonho. Ignácio costuma contar que já assistiu ao filme mais de 100 vezes e que a estrutura da obra influenciou Zero com seus diferentes planos e fragmentação.
Eles Eram Muitos Cavalos
Luiz Ruffato (2001)
O contato com a instalação Ritos de Passagem, do artista plástico Roberto Evangelista, durante a Bienal de Arte de São Paulo de 1996, foi fundamental para que o autor concebesse o livro, que retrata a classe trabalhadora paulistana e suas tensões diárias.
O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro
Sérgio Sant’Anna (1982)
O livro traz como fonte evidente o contexto cultural, especialmente da música e do teatro, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Além de João Gilberto, menção a outras figuras icônicas da cultura aparecem na narrativa, como John Cage, Bob Wilson, Antunes Filho, Tom Jobim, Miúcha, Caetano Veloso e Milton Nascimento.
Obras “contaminadas” por outras linguagens artísticas são tema de exposição no Sesc Ipiranga
De 29 de março a 2 de julho, o Sesc Ipiranga recebe Contaminações, exposição que materializa o universo de personagens de Ignácio de Loyola Brandão, Sérgio Sant’Anna e Luiz Ruffato e cria diálogos entre esses universos narrativos e criações de Franklin Cassaro, Eder Santos, Roberto Evangelista, Cristiano Mascaro, Heleno Bernardi e Álvaro Franca.
O mote da mostra é evidenciar como algumas importantes obras literárias brasileiras contemporâneas foram “contaminadas” por outras linguagens artísticas distintas. Com projeto expográfico concebido por Daniela Thomas e Felipe Tassara, a exposição está dividida em três espaços e materializa o universo dos personagens dos livros, colocando-os ao lado de obras de seus “contaminadores” para criar um novo e inusitado diálogo.
Desde o dia 30 de março, acontece também uma programação integrada centrada na relação da literatura com outras manifestações artísticas. A programação traz apresentações, residência artística, performances, cursos, oficinas, mostra de cinema e bate-papos que contam com Marcelino Freire, Fabiana Cozza, Coletivo AREAS, Miwa Yanagizaga, Camila Márdila, Jussara Miller, Ivana Arruda Leite, Carlito Azevedo, Veronica Stigger, Bruno Zeni e Antonio Xerxenesky, entre outros – além dos três autores que fazem parte de Contaminações.
Confira essa e mais informações no Portal Sesc em São Paulo.
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