Postado em 23/03/2017
(1) Silvana Tótora
Nietzsche, em seu livro Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagens da história para a vida, constrói uma cena em que um homem contempla um rebanho a pastar, imerso em sua ignorância do tempo, entregue ao prazer e ao desprazer do instante. Por não terem lembranças, os animais não sofrem nem de melancolia, nem de enfado. Ao invés de se vangloriar de sua humanidade diante deles, o homem olha invejoso para sua felicidade. Ele gostaria de gozar desse prazer sem melancolia ou dor. O animal, em razão de sua constituição específica, vive as sensações do momento e desconhece o tempo ou qualquer distância crítica propiciada pelo saber que lhe facultaria julgar, diferenciar, escolher ou deliberar. Sua memória são tão somente as sensações de prazer e desprazer. Assim também vivem as crianças, que brincam nas fronteiras do passado e do futuro.
O que Nietzsche inveja nos animais é sua felicidade desprovida de qualquer temporalidade. Eles não distinguem o ontem do hoje ou do amanhã. Por isso não sofrem por sua finitude ou incompletude, tampouco se refugiam em ideais de permanência. A melancolia é própria do humano e de um modo específico de se experimentar a realidade temporal: ora se atrasa no tempo e se chega tarde demais, ora se encontra à espera de algo que nunca chega. Acha-se, neste caso, sempre em defasagem e, portanto, fora do tempo.
Os humanos que se privam de uma arte de lidar com sua temporalidade ou de qualquer presente se veem, muitas vezes, jogados numa sucessão de imperativos em estado de urgência permanente, sem nenhuma expectativa ou horizonte. É contra isso que se lança o filósofo. E assim, a despeito de parecer que almejaria trocar sua condição humana de vivência temporal pela experiência a-histórica dos animais, ele nos lança para uma análise da história e da finitude em favor da vida. De que maneira podemos, como humanos, enfrentar nossa finitude sem fuga ou nostalgias de uma origem ou finalidade fora do tempo? Ou então, como estar no tempo sem uma adesão estúpida aos valores do presente, sem estar imersos num prazer destituído da invenção artística de um novo possível? Como estar no tempo mas, ainda assim, contra o tempo e numtempo por vir? Esse é o desafio que nos lança o filósofo no livro mencionado.
Temporalidade, finitude, memória e esquecimento são temas caros à velhice. E por que seria a velhice mais sensível a esta dimensão humana? Não podemos responder a esta questão com uma generalidade afirmativa, porque na cultura atual do longeviver propaga-se um modus vivendi de prazer e felicidade sem a espessura da vida. E vida, segundo a concepção que adotamos, é potência de existir, experimentum de uma força plástica para criar, a partir de si mesmo, modos de vida singulares.
Porém, quando se trata da arte – seja na literatura, seja no cinema –, constituem os personagens em sua velhice os protagonistas das cenas em que a vida, no sentido referido, e sua temporalidade são retratadas.
Atemo-nos nesta resenha a dois filmes recentes do cineasta italiano Paolo Sorrentino: A grande beleza e A juventude. Ambos são protagonizados por velhos. No primeiro, Jep Gambardella é um escritor de 65 anos que escreveu um único romance na juventude e não encontra inspiração para escrever outro. No segundo, Fred e Mick são dois velhos amigos de aproximadamente 80 anos. Fred é compositor e maestro aposentado e Mick é um cineasta ainda em atividade. Todos eles às voltas com uma história que se defronta com o passado e o presente, a memória e o esquecimento, combinados com uma falta de perspectiva para o futuro. Esses velhos se põem como uma espécie de consciência crítica de seu tempo presente, a saber, da sociedade atual, em que uma parcela de privilegiados economicamente se entrega às frivolidades e aos prazeres sem horizontes. Eles não deixam de estar envolvidos no niilismo, porém não sem um incômodo. Por niilismo entendemos, com base em Nietzsche, a combinação ambivalente entre um sintoma de decadência e aversão pela existência e a expressão de um aumento de força para dar início a um novo começo.
Jep, personagem central de A grande beleza, nutre-se do prestígio adquirido por seu romance escrito na juventude. O passado torna-se uma presença inseparável do presente. Ele vive em Roma, num apartamento de cobertura com vista para as ruínas do Coliseu. Passa suas noites em frenéticas festas regadas a álcool e cocaína, frequentadas por mulheres e homens de meiaidade ou já na velhice. Todos são ricos de bens e dinheiro, mas pobres de vida. As cenas das festas são intercaladas por longas caminhadas solitárias de Jep pelos monumentos de um passado glorioso de Roma. As histórias de Jep e de Roma se misturam: um passado conservado em ruínas e um presente sem perspectivas. Como espectador de uma história monumental, Jep não é capaz de repetir o gesto criador desse passado em ação no presente a favor da vida. Tudo cheira a mofo e decadência. As festas desenham um serpentear de repetições que não levam a lugar nenhum.
Em A juventude, Fred e Mick desenvolvem longos diálogos permeados por recordações de paixões de juventude entrecortadas por esquecimentos. Fred é acometido de uma apatia e recusa-se a reger uma de suas composições mais famosas. Ele não pode repetir as disposições afetivas que o levaram a compô-la para sua esposa. Mas em uma das cenas um tanto inusitadas, quando ontemplava solitário um rebanho a pastar, ele se põe a regê-lo, produzindo uma sinfonia da natureza circundante. Nesse momento, ele experimenta sua força plástica de criar algo a partir de si mesmo e, por isso, vivencia uma alegria única.
A temática de um intelectual ou artista em luta com sua condição atual de perda de inspiração, ou de uma esterilidade poética, é uma constante em inúmeros cineastas. Destacamos o clássico de Federico Fellini, protagonizado por Marcello Mastroianni, Oito e meio. Por sua vez, a crítica à sociedade do espetáculo, construída sobre as bases fugazes da fama e da busca insaciável por prazeres, também foi tema de outro clássico de Fellini, La dolce vita. Há ressonância entre A grande beleza de Sorrentino e os dois filmes de Fellini mencionados. A novidade do primeiro foi trazer um velho como personagem central, dando-nos a possibilidade de discussão sobre a relação, nada tranquila, entre as faculdades da memória e do esquecimento.
Seguindo as sugestões de Nietzsche, não se trata de uma escolha entre o animal e o humano, entre a temporalidade e sua ausência, ou entre a memória e o esquecimento, mas de tomá-las como necessárias à saúde de um indivíduo, povo ou cultura. Se a velhice nos afeta em relação à finitude, torna-se imperioso fazer da memória e do esquecimento uma arte a serviço da vida. Esse é o percurso que faremos, apoiados no filme A grande beleza.
As marcas do passado, por meio dos seus feitos grandiosos materializados nos monumentos, em esculturas e pinturas de grandes personagens conservados emmuseus, povoam todas as cenas do filme de Sorrentino. Alguns personagens, com presença significativa na trama construída para Jep, carregam no nome a glória da cidade, como a stripper de 42 anos de nome Romana e o poeta chamado Romano. Ambos estão deslocados do ambiente em que atuam e insistem num papel que não conseguem mais desempenhar. Como uma mulher de 42 anos pode querer concorrer com jovens polacas de 20? A poesia de Romano não tem uma escuta de seus amigos, que apenas o prestigiam sem entusiasmo. Ora, não se vive do prestígio da história passada. É preciso atualizar no presente a força de agir e criar que lhe rouxe a grandeza.
A sociedade do espetáculo materializa-se no desfile infindável, sem emoção, de imagens captadas pelas lentes da máquina fotográfica, e chega ao paroxismo com as selfies dos celulares. A história romana restringe-se a matéria de registro fotográfico pelas lentes dos turistas, e as colunas de um tempo de realização artística servem de suporte para a exposição de um pretenso artista que as cobre com selfies tiradas diariamente ao longo de mais de uma década. Ah, quão enfadonho é esse desfilar de selfies! Em uma cena, Jep retira-se após a oferta de uma de suas aventuras noturnas, uma bela e rica mulher, de mostrar-lhe as selfies que tira para, segundo ela, conhecer-se melhor. Ele admite ser a velhice um momento em que se deve poupar a si mesmo de coisas desagradáveis.
Nada parece interessar a Jep, exceto o sonho, sem sono, projetado no teto de seu quarto. Nele mergulha o olhar e se movimenta no mar aberto. E é nesse mar de sonhos que recorda um feliz momento de juventude. Ele emerge do mar com sua aparência de juventude e avista uma bela jovem com a qual experimentou pela primeira vez o amor. Ora, como poderia interpretar algo grandioso no passado quem não vivenciou algo maior e mais elevado do que tudo em sua vida? Jep não mais escrevia porque estava desencantado, em meio a um cenário carregado da beleza dos monumentos do passado, mas inacessível aos contemporâneos que se limitavam à contemplação sem a potência de agir em favor da vida presente. Mas como visualizar a beleza sem uma vivência bela?
O filme sugere, na cena final, que a grande beleza – como vivência necessária à potência de criação – não seria a recordação nostálgica da uventude, mas uma atualização no presente do afeto que desencadeou a criação. Sem amor-paixão, nada se produz de novo. A intensidade experimentada em um dado momento da existência pode ser afirmada e repetida infinitas vezes. Ora, isso é a vida! Ela é eterna em sua experimentação de novos possíveis, como diria Nietzsche. E Jep retoma sua inspiração na velhice quando é atingido pela vida e a experiência do amor. Relembrar o passado exige uma força plástica que cresce singularmente a partir de si mesmo e, somente assim, torna-se capaz de selecionar e promover a potência de criação e conformação de uma vivência real no presente. É o tamanho dessa força plástica que determina o que no passado obstaculiza o agir no presente e, portanto, precisa ser esquecido, e o que, ao contrário, poderá ser lembrado
(1) Professora do Departamento de Política do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e do mestrado em Gerontologia da PUC/SP