Postado em 03/03/2017
Poemas Inéditos
Ilustração: Marcos Garuti
Escrever é braçal
Escrever é braçal:
algas que puxassem
ao piso do oceano.
Escrever é nó:
no ponto em que torce
o que a palavra houver.
Escrever ama escrever,
inverte o fogo da vela,
faz oásis na geleira.
Escrever não sobra,
não paga a crédito,
persegue em silêncio.
Escrever recomeça
quando o copo está cheio.
Esvazia os órgãos internos.
Escrever repele o resto.
Põe a culpa no Estácio
Rio de entorpecente
Janeiro. Postal
da cidade em Arcos tráficos
da Lapa. Maravilha.
Bela, a bem da verdade.
Bala perdida à beça
toda favela à mostra
malandros de rapina
e a cidade-bagulho
em posição fetal.
É meio às escondidas
e sem licitação:
o buraco e o bueiro
Madureira, polícia
igreja e feira livre.
Rio de a quantas andas
o bicheiro famoso
ou não há carnaval.
Na praia, à solta, o pau
de selfie se lambuza
com as caras-metades
de dengue, de chopinho,
de a gente está sarada
fora do hospital público.
Linha Vermelha alerta,
Linha Amarela em pânico
cagaço, cocaína,
no meio do caminho
uma blitz me aloprou.
Vamos a esmo agora:
Floresta da Tijuca
noves fora, Paineiras,
todos os corpos morro
abaixo e mesmo assim
dizer bem desovados
por capangas mamíferos
agentes da lei-cachaça.
Sanctus dominus deo
tá tudo dominado.
Lasciate ogni speranza
ó botequim aberto,
não tem coisa pior
do que turista à toa
e vacilão e bicha.
Os subúrbios agridem!
Chama o Honório Gurgel!
Chama o Rio de Janeiro
de Piedade e mulher.
Toma na cara mesmo,
vê se aprende a ser gente.
Gavião
Pousado
no alto galho seco
um gavião
vi um gavião
acima da ciclovia de Brasília
súbito e vasto como aquele Electra II
rasante sobre uma rua de Santa Teresa
no poema de Ferreira Gullar.
Gavião no susto,
Como instantâneo de bico, penas, olhos agudos,
vi ao mesmo tempo a coisa alada,
o poema com garras na memória
e, sopro de espuma, o meu poema se fazendo,
soletrado entre pedaladas
ofegante surgindo, em meio ao redescoberto equilíbrio
de quem viu o bicho
suas asas que
na manhã de todas as bicicletas
também se pareciam,
idênticas diziam
serem elas mesmas o poema
que eu queria,
que eu inspirava e expirava.
Felipe Fortuna é poeta, ensaísta e tradutor. Publicou, em 2014, os poemas de O Mundo à Solta (Topbooks) e, em 2015, Taturana (Pinakotheke), de poesia visual. Em 2016, lançou a tradução do poema Briggflatts (Topbooks), do inglês Basil Bunting.