Postado em 10/02/2017
Primeiro espetáculo da Trilogia das Águas, “Lembranças de Peixes-Homens”, é resultado da residência artística realizada pelo Coletivo Estopô Balaio no bairro do Jardim Romano, no extremo leste da cidade de São Paulo.
Em dezembro de 2009, o bairro ficou famoso no noticiário nacional por ser atingido por uma enchente que durou cerca de 3 meses, fato que expôs o drama social de famílias que perderam tudo. Localizado às margens do Rio Tietê, até hoje o bairro sofre com constantes enchentes. O espetáculo é resultado de extensa pesquisa e tem como principal elemento da cena o morador, sua história e perspectiva. Dois dos atores da peça são moradores do bairro. O dramaturgo João Junior falou com a Eonline sobre a experiência com o espetáculo.
Eonline: Como vocês tomaram conhecimento dos problemas que atingiam o bairro?
João Junior: Em 2010, quando fui em um trabalho de iniciação artística com as crianças do Jardim Romano, no CEU Três Pontes, através do PIÁ (Programa de Iniciação Artística) da Prefeitura de São Paulo. Entre dezembro de 2009 até meados de março de 2010, parte do bairro ficou alagada e a experiência com as enchentes acompanham a vida dos moradores desde pequenos. As crianças relatavam histórias de fantasia na sua relação com a água. Elas inventavam outra vida para dar conta daquela situação tão caótica.
Eonline: Fale sobre o processo de construção do espetáculo e residência artística.
João Junior: O espetáculo foi construído a partir dos depoimentos dos moradores, dos jovens moradores que foram se aproximando de mim à medida que íamos nos aproximando do bairro. A residência artística nasceu de uma forma muito natural, pois o principal procedimento a ser adotado foi a convivência. Sempre tomava um café na casa de um morador, almoçava no restaurante de Dona Lica (cozinheira do bairro que teve seu restaurante alagado), batia um papo de fim de tarde na calçada. As conversas giravam em torno do Nordeste, pois boa parte dos moradores são migrantes vindos de lá, e também sobre as enchentes. Eu como migrante vindo do Nordeste fui descobrindo no Jardim Romano um pedaço de mim que tinha ficado para trás e vivia agora na memória. Aos poucos outros artistas foram migrando para São Paulo vindos da mesma cidade que eu - Natal/RN - e foram se juntando nesse processo de descobrir esse pedaço de Nordeste que é o Jardim Romano. Então, pela via da empatia e alteridade, fomos estabelecendo através do afeto um desejo de transformar a memória social do bairro em materialidade artística e que pudesse contar com a presença dos moradores neste processo. Então, alugamos, num primeiro momento, uma garagem e montamos o primeiro espetáculo - que têm na experiência da migração e das enchentes nas ruas do bairro o mote para a construção da dramaturgia - que narra a experiência dos moradores que participaram da montagem e de alguns de seus vizinhos.
Eonline: Conte um pouco sobre a perspectiva das crianças do bairro com as enchentes.
João Junior: As crianças tinham uma lembrança, apesar da dificuldade e tristeza retratada pelos pais, da fantasia gerada pela presença da água. Elas narram a fantasia quase como uma fábula, a experiência da enchente. Galhos de árvore eram confundidos com tubarões das janelas das casas; peixes que viviam escondidos nos guarda-roupas; cobras e sapos que conviviam harmoniosamente nas ruas quando saiam das águas. As crianças têm essa capacidade de reinventar a vida pela ludicidade e a água foi um estímulo na profundidade que cada criança do Jardim Romano revela ao trazer sua narrativa de vida. O primeiro espetáculo, por exemplo, chegou a ser chamado de "Daqui a pouco o peixe pula", a partir da condição de espera das crianças, pois elas ficavam nas calçadas esperando os peixes saltarem para que elas pescassem e levassem para suas casas.
Eonline: Como os moradores receberam as primeiras apresentações da peça?
João Junior: Apresentar qualquer espetáculo do Estopô Balaio no Jardim Romano é sempre uma experiência de mergulho na profundidade destas águas memoriais. Os moradores se reconhecem. Reconhecem a própria história a partir da versão deles e não da imprensa, como foi tão explorado pela grande mídia. Eles sabem que foram heróis da própria vida e artistas do viver, pois no bairro inventar novas formas de deslocamento e convivência foi necessário para se manter sobre e sob as águas durante três meses. No bairro mantemos uma relação que foi se construindo ao longo destes seis anos com os moradores nas suas casas, nas ruas, com as escolas públicas e instituições no bairro. Sabíamos que tínhamos que refletir essa memória em qualquer lugar daquele pedacinho de São Paulo, para que se pudesse perceber a força e coragem. Queremos sempre espelhar toda essa potência de resistência e reinvenção dos moradores do Jardim Romano. É sempre uma construção conjunta. É sempre um derramamento cada apresentação. Creio que esta pergunta deva ser feita e melhor respondida por um morador do bairro. Hoje, o coletivo mantem uma casa que se tornou uma espécie de espaço cultural, onde acontecem diversas ações e eventos, o que amplia o espectro de relação com os moradores.
Eonline: Como a arte pode operar em situação de vulnerabilidade social?
João Junior: Essa é uma pergunta que caminhamos com ela até hoje. Nos perguntamos isso desde o início de nossa residência. Ela nos move e nos fez realizar três espetáculos de teatro, uma publicação, saraus, intervenções urbanas, grafites, dança de rua, oficinas, dentre outras atividades. Não pretendemos respondê-las, mas sabemos que elas nos move a seguir. Creio que lá fomos entendendo a arte a partir dos desdobramentos artísticos gerados pela relação com o bairro, pudemos operar ainda mais na autoestima e em um processo de reconhecimento de si e da própria história de vida. Porém, sabemos que existem um conjunto de forças vigentes na cidade que impedem o avanço humano da cidade e da arte. É preciso ações de todos os formatos, direções e seguimentos da esfera pública e da sociedade quando se vive uma situação de guerra como o Jardim Romano viveu e ainda vive sempre que vêm as chuvas. Mas, podemos lutar para trazer o sonho à vida. E acreditamos no sonho de uma cidade mais humana e justa para todos, em todos os sentidos.
Confira fotos da apresentação do espetáculo apresentado em 28 de janeiro 2017 no Sesc Itaquera:
O Coletivo é retratado em um documentário, dirigido por Cristiano Burlan, que encerrou o Festival Latino-Americano de 2016, tendo participado, também, do 40º Festival de Brasília. E agora, o Filme ganha exibição única no Sesc Santo André, voltado para professores, gestores ambientais, educadores e interessados no assunto. Para participar, basta inscrever-se através do email agendamento@santoandre.sescsp.org.br; para saber mais sobre a programação, clique aqui.