Postado em 07/02/2017
Eu asseguro que alguém se lembrará de nós no futuro.
Safo de Lesbos
Por que não houve grandes mulheres artistas? Em 1971, a historiadora da arte Linda Nochlin publicou um artigo propondo algumas respostas para essa questão, que se coloca diante do fato de que são pouquíssimas as mulheres que passaram à posteridade reconhecidas por sua genialidade artística. Décadas antes, em 1929, Virginia Wolf havia publicado Um teto
todo seu, onde buscou reconhecer seus pares na história, mulheres escritoras perdidas nas brumas do tempo.
Ambas escrevem a partir da inquietação quanto a aparente ausência (ou escassez) de mulheres que tenham se dedicado ao fazer artístico. Embora separadas por quatro décadas, as autoras partem de pressupostos comuns, de que existiram muito mais mulheres artistas do que se tem notícia e que condições econômicas, sociais e morais seriam os principais fatores responsáveis pela discrepância numérica entre artistas do sexo masculino e do sexo feminino.
Linda Nochlin contesta o pressuposto de que maestria e grandiosidade são produtos do talento, qualidade inata que agraciaria mais a homens do que a mulheres. A resposta estaria, portanto, nas condições socioeconômicas, no lugar social destinado à mulher (o ambiente doméstico) e nas oportunidades de aprendizagem artística. Virginia Wolf, em 1929, já destacava a centralidade das condições materiais para o pleno desenvolvimento do trabalho artístico ao propor, como requisitos básicos para a escrita, o acesso a uma renda e a um “teto todo seu”, condições que permitiriam às mulheres dedicação integral à arte.
As profundas mudanças ocorridas ao longo do século XX oportunizaram um acesso inédito das mulheres ao fazer artístico em todas as linguagens. No entanto, a persistência da desigualdade de gênero segue sendo uma realidade também no campo da cultura. O coletivo de artistas Guerrilla Girls, em atuação desde 1985, vem sistematicamente denunciando a discriminação de gênero no mundo da arte. Em posters e autocolantes, as artistas do coletivo provocam a partir de questões como “As mulheres precisam
estar nuas para entrar nos museus?”, em alusão à abundância de pinturas de nus femininos em contraponto ao pequeno número de trabalhos de artistas mulheres nas coleções das instituições museais.
Michelle Perrot, historiadora francesa, destaca a importância da escrita da história das mulheres como forma de tirá-las do silêncio ao qual foram confinadas.
Escrever uma nova história da arte a partir da proposição de Perrot, é fazer justiça a mulheres como Christine de Pizan, cronista da história da França, escritora e poetisa que viveu no século XII e que foi tão próspera em seu tempo que vivia de sua arte; Sofonisba Anguissola, artista renascentista que angariou a admiração de Michelangelo e Van Dyck e influenciou gerações de mulheres artistas antes de cair em completo esquecimento; Camille Claudel, que passou à posteridade como amante de Rodin, enquanto seu trabalho escultórico permaneceu subestimado; Julieta de França, escultora brasileira, primeira mulher a vencer o mais importante prêmio da
Escola Nacional de Belas Artes, praticamente desaparecida da história da arte brasileira; ou Tia Ciata, a quem nunca se fez justiça quanto a participação na composição daquele que é considerado o primeiro samba gravado no Brasil, Pelo telefone.
A edição de número 3 da Revista do Centro de Pesquisa e Formação – CPF traz, em seu dossiê, uma contribuição que vem se somar a outras ações do Sesc SP na busca pela valorização e ampliação de visibilidade do trabalho artístico de mulheres,
como o projeto Damas da voz, do Sesc Campo Limpo; Mulheres em cartaz, do Sesc Belenzinho; Corpos insurgentes, do Sesc Vila Mariana; Empodera!, do Sesc Osasco; Degeneradas, do Sesc Santana; e os cursos, palestras e debates promovidos
pelo próprio CPF.
O dossiê Entre letras, imagens e sons: a produção cultural de mulheres, organizado por Carla Cristina Garcia – que assina o texto de apresentação – é composto por sete artigos. O primeiro deles, As mãos de minha avó: conhecimento tradicional e arte na obra de escritoras latino-americanas, é da própria Carla Cristina Garcia.
Os leitores encontrarão, na sequência, os textos Itinerário de uma viajante brasileira na Europa: Nisia Floresta (1810-1885), de Ligia Fonseca Ferreira; Apontamentos sobre campos de guerra, de Norma Telles; Mulheres compositoras no Brasil dos séculos XIX e XX, de Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel; Arte e água na obra de Sandra Cinto, de Miguel Chaia; A dissonante representação pictórica de escritoras negras no Brasil: o caso de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), de Rafael Balseiro Zin; e A arte performática, corpos e feminismo, de Leonilia Magalhães e Priscila Cruz Leal.
Na seção Gestão Cultural, ex-alunos do Curso Sesc de Gestão Cultural assinam
cinco artigos frutos dos trabalhos de finalização do curso.
Ao final da revista, os leitores encontrarão ainda a resenha de Camila Frésca sobre o livro Clara Schumann: compositora x mulher de compositor (Ficções Editora, 2011), a entrevista com Amy Allen, professora de Filosofia da Universidade Penn State e, fechando esta edição, a poesia Estradeira, de Elizandra Souza.
DANILO SANTOS DE MIRANDA
Diretor Regional do Sesc São Paulo